(O Estado de S. Paulo) Simone morava no Canadá quando recebeu o diagnóstico da gravidez praticamente ao mesmo tempo que o de câncer de mama. Para poder levar a gestação adiante, teve de comprar uma briga com médicos e recusar o protocolo de tratamento indicado, que preconizava o aborto terapêutico. O parto ocorreu junto com a mastectomia.
Placenta consegue bloquear até 80% do quimioterápico
Procedimento é fazer o tratamento normalmente e parar a quimioterapia 4 semanas antes do parto para ‘desintoxicar’ o feto
Apesar do temor de que o bebê seja afetado pela quimioterapia, médicos afirmam que é possível levar a gravidez adiante e fazer o tratamento com segurança, desde que sejam tomados todos os cuidados necessários.
Segundo o mastologista Waldemir Rezende, consultor do Hospital Santa Catarina e médico de Simone Calixto, a placenta bloqueia até 80% dos efeitos do tratamento quimioterápico, o que protege o feto. Como os outros 20% podem alterar a imunidade do bebê, a recomendação é interromper a quimioterapia quatro semanas antes do parto para “desintoxicar” o bebê.
“Há estudos que demonstram que a placenta possui proteínas que destroem produtos químicos, entre eles o medicamento da quimioterapia. Funciona como uma barreira. Os bebês nascem saudáveis”, afirmou.
Apesar disso, no Brasil não há recomendação específica sobre a conduta do médico quando recebe uma paciente com câncer durante a gravidez. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), depois do diagnóstico é necessário fazer uma análise multidisciplinar para avaliar os possíveis problemas.
Segundo o Inca, se descoberto na fase inicial, o câncer de mama não interfere no desenvolvimento do feto. Mas, se o estágio estiver muito avançado, pode levar à baixa de peso, restrição de crescimento intrauterino e até a prematuridade do bebê. O órgão enfatiza que o tratamento deve considerar a idade da gestação e o estadiamento (estágio) da doença para definir procedimentos.
Casos. O Inca não possui registros sobre número de casos de mulheres que enfrentaram um câncer na gravidez. O médico Rezende já atendeu 34 pacientes com esse diagnóstico – Simone é a mais recente.
De acordo com ele, a indicação é iniciar a quimioterapia depois de 12 semanas de gestação, quando o bebê já está formado. “Mas, em geral, a mulher só vai receber o diagnóstico depois dessa fase mesmo.” A cirurgia de retirada da mama pode ser feita durante a gravidez ou logo após o parto – depende de cada caso.
O principal fator complicador, segundo Rezende, é que em geral o tumor se alimenta dos hormônios estrógeno e progesterona, que estão elevados na gestação. Além disso, o organismo da mulher produz mais vasos sanguíneos para nutrir a placenta – e esses mesmos vasos ajudam a alimentar o tumor.
E, por último, a mulher grávida tem a imunidade reduzida para “não rejeitar” o feto, já que 50% dos genes são do pai e o organismo dela entende isso como corpo estranho.
‘Decidi manter a gravidez apesar do câncer de mama’
Simone soube da gestação no Canadá, onde foi orientada a abortar para se tratar; ela recusou e voltou ao Brasil para dar à luz Melissa
A médica Simone Calixto, 39 anos, é uma mulher de muita fé. Por isso tem certeza que o nascimento de sua segunda filha, há duas semanas, é um verdadeiro milagre. Melissa veio ao mundo cheia de saúde, com 2,4 quilos e 43,5 centímetros. Seria algo rotineiro na vida dessa ginecologista e obstetra, mas o longo caminho entre o teste de gravidez e o parto se tornou uma luta para salvar a vida de ambas.
VÍDEO: ‘Não conseguia me imaginar interrompendo uma vida’
Simone morava no Canadá quando recebeu o diagnóstico da gravidez praticamente ao mesmo tempo que o de câncer de mama. Para poder levar a gestação adiante, teve de comprar uma briga com médicos e recusar o protocolo de tratamento indicado, que preconizava o aborto terapêutico. O parto ocorreu junto com a mastectomia.
Na verdade, a história de Melissa é um milagre desde o início. A gravidez aconteceu contra todas as probabilidades. Simone, que já era mãe de Amanda, 3 anos, havia feito uma bateria de exames poucos meses antes que revelou uma endometriose grave. O médico disse que uma nova gravidez seria pouco provável e ela começou a tomar contraceptivos para controlar a doença. O check up também não revelou absolutamente nada de errado com as mamas.
Naquela época, ela, o marido e a filha estavam no Canadá havia oito anos. Ela estudava para revalidar seu diploma lá. Em novembro passado sentiu um nódulo na mama esquerda. Achou esquisito, mas acabou ficando mais ingrigada com a falha na menstruação. “Fiz um teste de farmácia e ficamos em êxtase”, conta.
Ela só havia atrasado a tomada da pílula uma única vez e, ainda assim, por poucas horas. Por isso achava que a demora não comprometeria sua eficácia. “Eu até queria engravidar novamente, mas estava esperando o tratamento da endometriose acabar para começar a tentar.”
Pré-natal. Na primeira consulta do pré-natal, ainda no Canadá, o caroço havia sumido e sua médica atribuiu às mudanças que ocorrem na mama durante a gravidez. Mas na segunda consulta ele estava maior, e havia outro na axila. “A médica pediu vários exames.” Foi aí que uma biópsia revelou a doença.
Em dez dias o tumor já havia dobrado de tamanho. Mas o diagnóstico do câncer em estágio avançado não foi a notícia mais difícil que Simone ouviu: “Eles me disseram que a gravidez estava alimentando o tumor com hormônios, que dificilmente o bebê sobreviveria e que o mais seguro era interromper a gestação para poder fazer o tratamento correto”, lembra.
Simone estava no melhor hospital de Ontário e nada convenceu os médicos a tentar preservar a gestação. “Sem esse passo (a interrupção da gravidez) não temos como oferecer tratamento”, disseram os especialistas, argumentando que as drogas seriam extremamente tóxicas para o feto. “Se naquele centro de referência eles tinham essa conduta, percebi que em nenhum outro hospital seria diferente”, diz.
Era uma sexta-feira. “O sábado foi o momento do maior desespero. Precisava tomar uma decisão, eles queriam marcar o procedimento para o início da semana. Senti que ia morrer, minha alma agonizava.”
Então ela lembrou de duas coisas: do seu sonar (aparelho usado para ouvir o coração do bebê na barriga da mãe) e de um vídeo de um programa de TV brasileiro que falava de um caso similar ao seu, em que o bebê tinha nascido saudável. “Coloquei o sonar na barriga e em dez segundos comecei a ouvir o coraçãozinho. Senti que ele estava bem vivo.” Achou o vídeo do programa na internet e procurou o contato do médico Waldemir Rezende, citado na reportagem.
Pouco mais de dez dias após o diagnóstico, embarcou de volta para o Brasil, com uma consulta marcada e a sensação de que sua história no Canadá tinha se encerrado.
“Não me deram um documento atestando que eu poderia viajar, tive medo que me impedissem por estar grávida. Quando entrei no avião, senti que estava salva.” O marido ainda precisou ficar lá alguns meses para resolver várias questões, entre elas a venda do apartamento, e só chegou 15 dias antes do parto.
Efeitos. No Brasil, assim que a gravidez completou 15 semanas – período mais crítico para a formação do embrião -, ela começou a quimioterapia. Foram seis ciclos, quase sem efeitos colaterais. “Isso não foi difícil. Difícil era enfrentar o que estavam me propondo. Via a minha barriga crescer e isso me deixava feliz.”
O último ciclo foi feito com 30 semanas de gravidez. A ideia era ter tempo para recuperar o organismo antes de a bebê nascer, no prazo normal. Mas o tumor voltou a crescer, e ficou mais agressivo. O médico disse que não podiam esperar mais e que teriam de adiantar o parto.
A cesárea foi feita com 36 semanas de gravidez e, mesmo um pouco prematura, a bebê só teve um leve desconforto respiratório após o parto e passou 24 horas na UTI. Simone viu a filha rapidamente, mas não pode pegá-la no colo. Foi logo anestesiada para a cirurgia de retirada de uma das mamas. Também não vai poder amamentá-la, porque as drogas passam para o leite.
Agora ela deve enfrentar uma bateria de exames que não puderam ser feitos durante a gravidez, como tomografias. E mais sessões de químio.
“O mais difícil já passou. A Melissa é um milagre, uma promessa que se cumpriu”, diz Simone, que atribui o milagre da vida da filha ao “anjo Waldemir Rezende”. Agora ela só tem três desejos: poder pegar a bebê no colo todos os dias, fazer sua mamadeira e trocar sua fralda. Como qualquer mãe.
Acesse em pdf:
‘Decidi manter a gravidez apesar do câncer de mama’ (O Estado de S. Paulo – 01/07/2012)
Placenta consegue bloquear até 80% do quimioterápico (O Estado de S. Paulo – 01/07/2012)