(Envolverde) O aumento da violência contra a mulher, a agressividade dos feminicidas e a idade cada vez menor de vítimas e culpados interpelam as autoridades chilenas pela falta de políticas de prevenção e pela hipocrisia de uma sociedade que “busca permanentemente mostrar sua cara mais bonita”. Um estudo da organização não governamental Activa mostra que os casos de violência intrafamiliar aumentaram 10% no primeiro semestre deste ano no Chile, bem como seu grau de agressividade. Entre janeiro e junho de 2012 houve 17 assassinatos de mulheres, também chamados feminicídios, por parte de seus companheiros, quatro a mais do que os registrados em igual período do ano passado.
A diretora da Activa, Gloria Requena, explicou à IPS que, entre as causas identificadas, existem algumas de ordem estrutural e psicológica, e outras que têm a ver com falhas no âmbito legislativo. “Quanto às causas estruturais, isto tem a ver com a subvalorização que se faz das mulheres. Lamentavelmente, as campanhas criadas para enfrentar a violência geram mais violência e não atacam as causas da mesma”, observou.
Requena acrescentou que o diálogo no Chile se perdeu desde o político até as relações familiares. “O que observamos é que os casais não têm ferramentas para o diálogo e o Estado não as está entregando. Os subconflitos hoje em dia são solucionados de maneira cada vez mais violenta ou diretamente por meio de fatos de sangue”, destacou a ex-chefe da Divisão de Segurança Cidadã do governo da presidente Michelle Bachelet (2006-2010).
A pesquisa da Activa também mostra um aumento da crueldade em relação à vítima nos casos de feminicídio, nos quais a morte é acompanhada por múltiplas formas de maus-tratos e sofisticações nas agressões, especialmente quando se verifica o uso de armas brancas nesses crimes. “Houve recrudescimento não só da violência intrafamiliar como também de outras figuras delitivas, como lesões, homicídio, que dão conta da resolução de conflitos por via da força e não pelo diálogo”, pontuou Requena.
A pesquisa registra que as principais causas da violência seriam ciúmes e desejo de vingança, produto da rejeição pela mulher das pretensões amorosas de seu agressor. Entre os meios empregados para executar o feminicídio nota-se um aumento no uso de armas brancas e de fogo, que chega a 73%, seguido por asfixia, com 14%, e objetos contundentes, com 10%.
Sobre as armas brancas e de fogo, o estudo constatou que o agressor acrescentava sua violência e os corpos das vítimas apresentavam múltiplos ferimentos, o que significa maior nível de violência que não se satisfaz após provocar a morte. A maioria das vítimas tem entre 20 e 39 anos de idade, período de consolidação do casal e, em especial, da convivência. Os agressores têm entre 20 e 59 anos, embora preocupe o crescimento na faixa etária entre 20 e 39 anos em 2012.
O Chile conta, desde outubro de 2005, com uma lei de violência intrafamiliar que, entre outras coisas, estabelece a criação dos tribunais de família. Esta lei foi complementada cinco anos depois com a Lei de Feminicídio, que define este crime como a morte violenta de uma mulher pelo abuso do poder de gênero e que ocorre dentro de uma relação de casal, atual ou passada. No entanto, este conceito é criticado pelas organizações feministas, segundo as quais ele exclui outras formas de violência contra a mulher, que se estabelecem em diversos contextos.
“No Chile se legisla sobre o tema da violência de maneira fragmentada, só a intrafamiliar, deixando fora a agressão durante o noivado, por exemplo”, apontou Carolina Carrera, presidente da não governamental Corporação Humanas. “Aqui não há uma lei que incorpore toda a violência de gênero que estamos vivendo: desde a sexual policial até a intrafamiliar”, disse à IPS.
“Nosso país mostra permanentemente uma cara bonita e deixa estes temas debaixo do tapete. Somos um país hipócrita como sempre fomos, e isso é o mais grave”, ressaltou Carrera. Para ela, o movimento feminista conseguiu dar visibilidade ao tema da violência contra a mulher. O problema é que, segundo o estudo, “parece que estamos retrocedendo”, acrescentou. “A pergunta é o que estão fazendo este governo e as políticas públicas para evitar tudo isso”, questionou Carrera.
“Não há política de prevenção contra a violência que seja permanente e sistemática no tempo. Tampouco há um programa educacional desde a primeira infância que esteja permanentemente focado nisto”, enfatizou. Requena concorda com Carrera. “Deve-se reformar a definição de sujeitos protegidos, a incapacidade das medidas cautelares para proteger as vítimas. A legislação atual não define o que entendemos por maltrato nem quantas vezes uma mulher deve apanhar e se ver vulnerada em seus direitos para que a lei a proteja”, indicou.
A diretora da Activa insistiu que a figura legal do feminicídio no Chile obriga que se estabeleça um vínculo afetivo entre a vítima e o agressor, “então, nas relações de noivado não se configura este crime porque não há convivência, tampouco o são nas relações profissionais e na situação das prostitutas”, destacou Requena. O Chile é um dos poucos países da América Latina que não adotou o Protocolo Facultativo da Convenção sobre Eliminação de Todas as formas de Discriminação Contra a Mulher. Tampouco conta com uma lei que aborde a violência contra as mulheres em sua integridade.
Segundo o Informe de 2011 da Articulação Regional Feminista pelos Direitos Humanos e a Justiça de Gênero, “o Serviço Nacional da Mulher (Sernam) se foca na incorporação da perspectiva de gênero na atenção da violência familiar, por meio de convênios bilaterais, e não propõe ao Poder Executivo uma política sobre prevenção da violência de gênero”. Contudo, as ativistas defendem a destinação de mais recursos e que o Sernam passe a ser um Ministério. “O Estado deve dar uma resposta adequada para combater este flagelo, porque somos uma sociedade com vários indicativos de que estamos começando a ficar doentes”, alertou Requena.
Acesse em pdf: Quando matar já não basta (Envolverde – 20/07/2012)