(O Estado de S. Paulo) Um ano depois de ser condenado pela ONU, o Estado brasileiro ainda não se envergonhou pela morte de Alyne
A discriminação mata. O efeito dessa oração intransitiva não é só linguístico, mas visceral para as mulheres. Em 2002, a discriminação matou Alyne da Silva Pimentel Teixeira. A oração é agora transitiva e o responsável é conhecido, segundo a decisão do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), das Nações Unidas: a discriminação do Estado brasileiro contra as mulheres. Alyne era uma jovem mulher casada, mãe de uma menina de 5 anos. Morreu grávida e sua morte é adjetivada como “evitável” pelas estatísticas internacionais. Morreu porque não foi devidamente cuidada. Morreu após dolorosa peregrinação e sofrimento pelas macas e corredores de hospitais na periferia do Rio de Janeiro. Alyne morreu porque queria ser mãe e aos seis meses de gestação adoeceu, mas sua dor não foi cuidada.
Alyne agonizou, vomitou sangue, padeceu de um coma sem assistência médica. A mãe de Alyne, d. Maria de Lourdes da Silva Pimentel, está velha e doente. Não quer mais falar sobre a saudade da filha e sente que vai morrer sem que o Estado brasileiro reconheça sua responsabilidade pela morte de Alyne. Cuida da neta órfã, cujo pai o destino desconhece após a morte de Alyne. D. Maria de Lourdes reclama a reparação pela morte da filha, por isso transformou seu sofrimento em um caso para as cortes internacionais: a primeira decisão do Cedaw sobre morte materna, de agosto de 2011, determinou que o Estado brasileiro reparasse financeiramente a família de Alyne pelas “graves violações” sofridas”. Foi o primeiro caso internacional em que o sistema das Nações Unidas afirmou que descuidar das mulheres grávidas é uma violação de direitos humanos. O Estado brasileiro, esse sujeito da discriminação contra as mulheres, foi considerado culpado pela morte de Alyne.
A história de Alyne é agora um caso inesquecível para as cortes internacionais. Mas o Brasil teima em não reparar sua vergonha. Um ano após a decisão, não houve mudanças na vida de d. Maria de Lourdes. A responsabilidade pela compensação financeira é disputada entre o governo federal e o Estado do Rio de Janeiro, em uma negociação de deveres que ignora que a vida de Alyne foi datada e que mãe e filha padecem com a espera. Sofrem pela saudade e pela pobreza. Mas a demora em reconhecer a responsabilidade tem implicações para além da família de d.Maria de Lourdes. É um sinal de que o Estado brasileiro não se envergonhou verdadeiramente pela morte de Alyne. A morte evitável de mulheres em idade reprodutiva não é um destino da maternidade, mas um ato de violência de uma ordem política que não dá o devido valor à vida das mulheres. Por isso, a melhor forma de descrever a causa da morte de Alyne não é com um diagnóstico médico de hemorragia digestiva, mas com um julgamento ético: Alyne morreu por discriminação contra as mulheres.
Só as mulheres engravidam – não importa a revolução biomédica, o útero é ainda a metonímia da criação. Na mesma simplicidade argumentativa, não é demais lembrar que só as mulheres têm útero, engravidam e dão à luz. A reprodução biológica é o que anima a vida social, mas para isso é preciso reconhecer que as mulheres têm direito à saúde reprodutiva. A decisão do Cedaw menciona obrigações do Estado brasileiro para com as mulheres. E diferencia as obrigações de conduta das obrigações de resultado. As primeiras são aquelas listadas como recomendações gerais do Cedaw ao Brasil: garantir que as mulheres tenham acesso ao atendimento obstétrico adequado; garantir o treinamento dos profissionais de saúde sobre os direitos à saúde reprodutiva das mulheres; assegurar que os casos de violação dos direitos das mulheres serão remediados; oferecer treinamento ao Judiciário; assegurar que o sistema de saúde cumprirá com as regulamentações internacionais – uma lista de recomendações óbvias em uma ordem constitucional que reconhece o “direito à saúde” como um direito fundamental. Mas quais obrigações de conduta e de resultado foram cumpridas pelo Estado brasileiro neste último ano desde a decisão do Cedaw? D. Maria de Lourdes ainda espera o cumprimento do primeiro item da decisão de “garantir reparação apropriada, inclusive compensação financeira, à autora e à filha de Alyne”.
A estratégia política do Estado brasileiro foi a do silêncio em relação à decisão do Cedaw. Um silêncio cínico diante do escândalo do caso e da singularidade da dor da orfandade de uma mãe idosa e de uma filha agora adolescente. Não há ameaça à soberania política por uma decisão de um comitê legítimo internacional como é o Cedaw – a verdade é que não existe soberania para atos de discriminação injustos. Alyne agora é um caso de violação de direitos humanos. Sua mãe e sua filha são duas mulheres de carne e osso à espera da justiça. Todas nós somos espectadoras à espera de uma nova ordem que reconheça que proteger a saúde reprodutiva das mulheres é garantir valor às nossas vidas.
Debora Diniz á antropóloga, professora da UnB e pesquisadora da ANIS – Instituto de Bioética, direitos humanos e gênero
Leia em pdf: Destino evitável, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo – 12/08/2012)
Leia mais: Carta para autoridades sobre caso Alyne (10/08/2012)
Caso Alyne: Entidades denunciam inércia do Brasil e exigem que assuma responsabilidade e indenize família (Viomundo – 15/08/2012)