(Folha de S.Paulo) Há sempre um tipo de gratificação para a pessoa que suporta certos martírios ‘heroicamente’
POR QUE mulheres relutam tanto em denunciar as agressões por elas sofridas física ou verbalmente?
Quando uma pessoa é agredida, sua autoestima é alterada e ela ocupa ao mesmo tempo dois espaços: por um lado, ela aguentou firme; por outro, foi humilhada. Uma parte dela é a forte, outra, a fraca.
Quem comete a violência também ocupa concomitantemente dois lugares: o do agressor e o do covarde.
Nem todo mundo precisa ser humilhado ou agredir para se sentir mais forte.
Mas, frequentemente, encontramos esse tipo de relacionamento entre irmãos, colegas e casais que, assim, mantêm um vínculo dramaticamente incestuoso.
A ironia, os apelidos, as gozações repetitivas, toda essa violência não física cai numa mesma categoria: a “faz, que eu gosto”.
Há sempre uma espécie de gratificação, alguma compensação, explícita ou implícita, para alguém que suporta “heroicamente” certos martírios. E a família constitui uma desculpa frequente para a perpetuação desses dramas: “Não queremos brigar durante a refeição”; “Não queremos dissolver o casamento”.
A literatura, o teatro e a telenovela descrevem esse tipo de relação à qual chamamos de “dramática”. É a situação em que pessoas estão imersas em laços duradouros, mas o que funciona como amálgama da convivência é exatamente o sofrimento mútuo ou mesmo só a insatisfação de cada um.
Olhando de perto, qualquer enredo de telenovela se baseia na vontade das personagens de se livrarem de seus cacoetes e de violências que sofrem -e na impossibilidade de conseguirem tal coisa sem pagar o preço de romper o convívio ou uma relação familiar.
Cuidar do emprego, manter-se à frente de certos grupos também pode exigir que a pessoa suporte esse esquema sadomasoquista. Em linguagem clínica, é o nome desse tipo de relação.
O masoquista não pode sofrer se não estiver em contato com quem lhe propicie sofrimento. E o malvado não tem dificuldade para achar quem o aguente.
Aos casais que se mantêm unidos apesar das agressões, vamos considerar: a Lei Maria da Penha é um recurso importante.
Mas a minoria das mulheres agredidas tem coragem de ir a público e denunciar o parceiro, seja porque aquela violência rotineira está muito instalada na dinâmica do casal, seja porque ela não está habituada a se valer da força adquirida nas últimas décadas.
Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de “Cotidiano nas Entrelinhas” (ed. Ágora) e “Educação ou o quê?” (Summus)
Acesse em pdf: Dor e Flor, por Anna Veronica Mautner (Folha de S.paulo – 04/12/2012)