(O Estado de S. Paulo) As políticas econômicas da década de 1990, obcecadas pelo ‘crescimento’, levaram a violência contra as mulheres a novas proporções na Índia
Até 16 de dezembro de 2012, Jyoti Singh Pandey era apenas uma estudante universitária de 23 anos a caminho de casa após uma sessão de cinema em Nova Délhi. Naquela noite, porém, foram-lhe brutalmente roubados o próprio corpo, a identidade, os direitos humanos. Estuprada por seis homens em um ônibus em movimento, com requintes sórdidos de tortura com uma barra de metal, a jovem indiana resistiu por 13 dias após a agressão – e morreu no dia 29 de dezembro. A Índia tremeu com enérgicas manifestações e protestos que se alastraram por diversas cidades do país.
Nessa semana, cinco homens foram acusados oficialmente perante a Justiça indiana – três se declararam inocentes. O sexto suspeito é um adolescente de 17 anos, que será julgado em uma corte juvenil. Enquanto os julgamentos se desenrolam a portas fechadas, resta a lembrança de Jyoti Singh Pandey como símbolo para as milhares de mulheres violentadas diariamente na Índia. “Jyoti detonou uma revolução social”, diz a filósofa indiana Vandana Shiva.
Nascida em Dehradum, Vandana colaborou com organizações ambientalistas nos quatro cantos do mundo – África, Ásia, Américas e Europa. Atualmente vive em Nova Délhi, onde lidera o Research Foundation for Science, Technology and Ecology. Autora de Staying Alive: Women, Ecology and Survival in India (1988), Biopiracy (1997) e Water Wars (2002), entre outros, a filósofa mescla movimentos políticos alternativos, ideais ambientalistas, críticas econômicas, biotecnologia e bioética. Desse amálgama teórico saem suas principais ideias para defender os direitos das mulheres mundo afora.
“Se permaneço firme hoje é porque antes de mim outras pessoas lutaram contra a discriminação contra as mulheres”, diz. “Meu avô iniciou a primeira escola para garotas na área rural de Uttar Pradesh. E queria transformá-la em uma faculdade. No estilo do Mahatma Gandhi, ele fez greve de fome para que a universidade fosse reconhecida pelo governo. Morreu nesse sacrifício. Um dia depois de sua morte, a instituição conquistou status de faculdade”, ela conta ao Aliás. “E minha mãe e meu pai lutaram contra a discriminação de castas. Assim adotaram o nome neutro ‘Shiva’ para renunciar à identidade de casta deles. Minha mãe viveu uma vida tão independente quanto meu pai. Foi um exemplo que tornou a igualdade de gêneros uma condição vital para mim”, diz.
Ecofeminista premiada com o Right Livelihood Award – considerado o Nobel da Paz alternativo –, Vandana escreveu um ensaio em tributo a Jyoti Singh Pandey no dia 29 de dezembro. Para pensar a questão feminina (e a brutalidade da violência contra as mulheres no país), a autora extrapola as fronteiras culturais e leva a discussão aos campos da economia e da política. A seguir, trechos do ensaio.
Perversas tradições.
“A violência contra as mulheres é tão antiga quanto o patriarcalismo na Índia. O patriarcalismo tradicional estruturou nossas visões de mundo e nossas mentes. Moldou o universo sociocultural indiano na dominação sobre as mulheres, negando-lhes a humanidade e o direito à igualdade. No entanto, essa dominação se intensificou e se tornou mais perversa recentemente, tomando formas mais brutais, como a morte de Jyoti Singh Pandey, em Nova Délhi, e o suicídio de uma garota de 17 anos, também vítima de estupro coletivo, em Chandigarh. Casos de estupro e violência contra as mulheres dispararam nos últimos anos. O National Crime Records Bureau registrou 10.068 casos de estupro em 1990, número que saltou para 16.496 em 2000. Em 2011, foram 24.206 estupros – um incrível aumento de 873% desde 1971, quando a instituição começou a registrar esses casos. Assim, Nova Délhi emergiu como a capital do estupro na Índia, respondendo por 25% dessas ocorrências. Até que se faça justiça por nossas filhas e nossas irmãs violentadas, o movimento contra a violência não pode parar. E, enquanto intensificamos nossa luta por justiça, também precisamos questionar: Por que os casos de estupro cresceram 240% desde 1990, época em que as novas políticas econômicas foram introduzidas no país? Há uma relação entre os crimes contra as mulheres (mais intensos, mais brutais) e a economia (imposta, injusta e insustentável)? Acredito que sim.
O auge da intempérie.
“Não estou sugerindo que a violência contra as mulheres comece com as políticas econômicas neoliberais. Estou consciente do preconceito de gêneros arraigado na sociedade indiana tradicional. Permaneço firme hoje, pois, antes de mim, outras pessoas lutaram contra as exclusões contra mulheres e crianças. Meu avô sacrificou sua vida pela igualdade feminina. Minha mãe foi uma ‘feminista’ antes de a palavra sequer existir. Mas quero dizer que a violência contra as mulheres tomou uma nova e mais perversa forma, a partir do cruzamento de duas linhas: as estruturas patriarcais tradicionais e as estruturas capitalistas emergentes. Precisamos pensar nas relações entre a violência do sistema econômico e a violência contra as mulheres. Para ilustrar: intempéries sempre aconteceram. Mas como mostram o superciclone Orissa, os ciclones Nargis e Aila, os furacões Katrina e Sandy, a intensidade e a frequência desses desastres se transformaram com as mudanças climáticas. Na mesma linha, nossa sociedade sempre discriminou crianças meninas. Mas e a epidemia de feticídio feminino? E o desaparecimento de 30 milhões de garotas nem nascidas? Levaram essa discriminação a novas proporções. À violência mais brutal e mais perversa – e relacionada aos processos alavancados pelo modelo econômico.
Dois pesos, duas medidas.
“O modelo econômico míope, com foco no ‘crescimento’, desconsidera a contribuição das mulheres para a economia. Quanto mais argumenta, ad nauseum, sobre o ‘crescimento inclusivo’ e ‘inclusão financeira’, mais o governo exclui as contribuições femininas para a economia e a sociedade. Isso porque, de acordo com os modelos econômicos patriarcais, a produção para subsistência é considerada ‘não produção’. Do valor em ‘não valor’, do trabalho em ‘não trabalho’, do conhecimento em ‘não conhecimento’, essas transformações são engendradas pelo mais poderoso número que dita nossas vidas: o produto interno bruto, uma ideia patriarcal – que muitos comentaristas passaram a chamar de ‘problema interno bruto’. Medidas assim se ancoram na ideia que se os produtores consomem o que eles mesmos produzem… Eles não produzem nada, de fato, porque ficam fora das fronteiras da produção. Esses modelos são construções políticas que, na sua própria dinâmica, excluem os ciclos de produção regenerativa e renovável. Por isso, todas as mulheres que produzem para sustentar suas famílias e crianças, suas comunidades, são tratadas como ‘não produtivas’ e ‘inativas’ economicamente. Quando a economia é confinada ao mercado, a economia autossustentável é vista como uma lacuna. A desvalorização do trabalho das mulheres é o resultado natural de um modelo de produção construído pelo patriarcalismo capitalista. Ao se restringir aos valores da economia de mercado, esse modelo ignora a importância (e o valor econômico) de duas esferas vitais para a sobrevivência humana: a economia sustentável e a economia da natureza. Nesses modelos alternativos, o valor econômico mede como são preservadas a vida humana e a vida na Terra. Isto é, nesse sistema, a moeda é a vida – não o dinheiro ou o preço de mercado.
A cultura do estupro.
“Esse modelo patriarcal distancia as mulheres das fontes naturais das quais dependem – a terra, a floresta, as sementes e a biodiversidade. Reformas econômicas ancoradas na ideia de crescimento ilimitado num mundo limitado só podem ser mantidas com os poderosos arrebatando recursos dos vulneráveis. O ‘roubo’ de recursos, essencial para o tal crescimento, cria uma cultura do estupro: o estupro da Terra e das mulheres. Esse crescimento só é ‘inclusivo’ por incluir mais e mais números nesses círculos de violência. Noutras vezes, destaquei repetidamente que o estupro da Terra e o estupro das mulheres estão intimamente relacionados, tanto metaforicamente quanto materialmente. Primeiro, por moldar visões de mundo. Segundo, por moldar a vida cotidiana das mulheres. Uma vez vulneráveis economicamente, as mulheres se tornam mais vulneráveis a outras formas de violência, como a agressão sexual. Isso nós podemos observar durante uma série de audiências públicas sobre o impacto das reformas econômicas nas mulheres. Esses encontros foram organizados pela National Comission on Women e pela Research Foundation for Science, Technology and Ecology.
Na raiz do abismo.
“Ainda sobre as relações entre a violência e o modelo econômico. As reformas nos levaram à subversão da democracia e à privatização do governo. O governo comenta a economia como se nada tivesse a ver com a política e o poder. Ora, os sistemas econômicos influenciam os sistemas políticos. É imposto um modelo econômico moldado de acordo com interesses políticos de uma classe e de um gênero em particular. É uma convergência de poderes econômicos e políticos que agravam as desigualdades e acirram a distância entre a classe política e o desejo da sociedade que, teoricamente, eles deveriam representar. Isso está na raiz da ruptura entre políticos e a sociedade, tal como vivenciamos durante os protestos desde o estupro coletivo de Nova Délhi. Pior ainda, temos uma classe política alienada que teme seus próprios cidadãos. Isso justifica o crescente uso da força policial para esmagar manifestações civis não violentas, como testemunhamos em Délhi. Ou na tortura de Soni Sori, em Bastar (presa em 2011, a ativista disse que foi torturada e violentada sexualmente por policiais de Chhattisgarh). Ou na prisão de Dayamani Barla, em Jhakhand (presa em 2012, a jornalista foi acusada de perturbar a lei e a ordem ao liderar protestos em anos anteriores). Ou nas milhares de agressões a comunidades que lutam contra a usina nuclear em Kudankulam. Por isso, os políticos se cercam de seguranças VIP, desviando a polícia de seus deveres importantes, como proteger mulheres e cidadãos comuns.
Commodity geral.
“Além disso, o modelo econômico atual transforma tudo em commodities. Tudo, incluindo as mulheres. As sementes, a terra, a comida, as mulheres, as crianças. Alavancado pela liberalização econômica, tudo se transforma em commodities. Isso degrada os valores sociais, acirra o patriarcalismo e intensifica a violência contra as mulheres. Nós paramos uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, com o slogan: ‘Nosso mundo não está à venda’. Essa é a ideia. Sistemas econômicos influenciam valores culturais e sociais. E uma economia de commodities cria uma cultura de commodities, onde tudo tem um preço. E nada tem valor.
Entre quereres e poderes.
“Assim, a cultura do estupro é um sintoma das mudanças decorrentes da economia neoliberal. Precisamos de auditorias sociais para as políticas econômicas em nossos tempos. Se tivéssemos uma auditoria sobre a corporativização do setor de sementes, 270 mil fazendeiros não teriam sido empurrados ao suicídio na Índia. Se tivéssemos uma auditoria sobre a corporativização da agricultura, não teríamos um em quatro indianos faminto, uma em três mulheres mal nutrida, uma em duas crianças definhando devido a severa desnutrição. Talvez assim, a Índia não fosse a ‘república da fome’, tal como escrevera Utsa Patnaik (economista marxista da Jawaharlal Nehru University). Vítima do estupro coletivo em Nova Délhi, Jyoti Singh Pandey detonou uma revolução social. Uma revolução que devemos apoiar, aprofundar, ampliar. Devemos exigir rápida e efetiva justiça para as mulheres, com leis novas e tribunais mais ágeis para condenar os responsáveis por esses crimes. Devemos ver o continuum das diferentes formas de violência contras as mulheres: o feticídio feminino, a exclusão econômica, as agressões sexuais. Precisamos dar continuidade ao movimento por reformas sociais para garantir a igualdade e a segurança das mulheres. Isso deve ser construído nos pilares fundados com o movimento de independência e o movimento feminista nos últimos 50 anos. E, enquanto fazemos tudo isso, precisamos mudar o paradigma em vigor. Economia e sociedade não estão isoladas. As reformas nesses dois campos não podem mais ficar separadas. Para dar fim à violência contra as mulheres, também precisamos mudar. Mudar de uma economia capitalista violenta para economias sustentáveis e pacíficas, que respeitem as mulheres e, no limite, a própria Terra.”
Acesse em pdf: No continuum da violência (O Estado de S. Paulo – 12/01/2013)