(Universidade Livre Feminista) Rebecca Reichmann Tavares é, desde 2009, representante e diretora regional Brasil e Cone Sul da ONU Mulheres – Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres.
Com mais de 20 anos dedicados aos temas de justiça social, igualdade racial e defesa dos direitos humanos das mulheres, Rebecca é graduada pela Yale University, doutora pela Harvard Graduate School of Education e tem vários livros publicados e grande produção sobre racismo no Brasil, igualdade racial, direitos das mulheres e microfinanças na América Latina.
Nesta entrevista exclusiva para o blog, a diretora regional Brasil e Cone Sul da ONU Mulheres comenta sobre o trabalho da agência no Brasil, seus projetos e sua atuação com os governos e entidades da sociedade civil, e também opina sobre o atual panorama da violência contra a mulher no país. Confira a seguir:
Quais são os projetos que a ONU Mulheres apoia no Brasil?
A criação da ONU Mulheres – Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres – é resultado de anos de negociações entre Estados Membros da ONU e pelo movimento de defesa das mulheres no mundo. A ONU Mulheres trabalha em projetos distribuídos em 5 áreas de atuação: Fim da violência contra as mulheres; Paz & Segurança; Liderança e participação Política; Orçamentos sensíveis a gênero eEmpoderamento Econômico.
A agência trabalha junto à sociedade civil e aos governos para construir sociedades que visem à equidade de gênero e o empoderamento das mulheres em todas as suas esferas.
Quais os resultados da introdução de diretrizes internacionais da ONU Mulheres no Brasil?
A ONU Mulheres está em pleno funcionamento desde 1º de janeiro de 2011, sob coordenação da Sra. Michelle Bachelet, subsecretária-geral e diretora-executiva da ONU Mulheres. A agência é uma instância forte e dinâmica voltada para as mulheres e meninas, proporcionando-lhes uma voz poderosa em nível global, regional e local. A entidade tem como funções principais: apoiar os organismos intergovernamentais como a Comissão sobre o Status da Mulher na formulação de políticas, padrões e normas globais; ajudar os Estados-membros a implementar estas normas, fornecendo apoio técnico e financeiro adequado para os países que o solicitem, bem como estabelecendo parcerias eficazes com a sociedade civil; e ajudar o Sistema ONU a ser responsável pelos seus próprios compromissos sobre a igualdade de gênero, incluindo o acompanhamento regular do progresso do Sistema.O resultado deste trabalho é o aprimoramento ou a criação e/ou incorporação de leis e diretrizes internacionais que avancem os direitos das mulheres e a igualdade de gênero nos países de atuação.
Como a senhora analisa os projetos sociais para mulheres vítimas da violência que estão atualmente em desenvolvimento no Brasil?
Os fundos e recursos humanos disponíveis para suprir a necessidade são inadequados. Por exemplo, hoje em dia existem apenas 520 Deams (Delegacia Especial de Atendimento à Mulher) em território nacional, quando o Brasil tem mais de 5 mil municípios. Muitas ONGs oferecem serviços de apoio, mas não se pode esperar que estas organizações sejam capazes de abarcar as milhares de mulheres que necessitam de suporte. O Estado brasileiro deve fazer um investimento planejado em recursos para atender às necessidades de mulheres sobreviventes de violência, bem como em programas de educação e prevenção.
Pode nos contar um pouco sobre o projeto “Una-se”? Que outras ações semelhantes a ONU Mulheres pretende implantar ainda este ano?
A campanha “UNA-SE pelo fim da violência contra as mulheres” é um esforço com a finalidade de prevenir e eliminar a violência contra as mulheres e meninas em todas as partes do mundo até 2015. Na América Latina e no Caribe, a campanha, onde participam todas as agências do Sistema ONU, trabalha em três pilares. O primeiro baseia-se no fim da impunidade, para garantir o acesso das mulheres à Justiça. O segundo, denominado “Nem uma mais”, trabalha com os ministérios de educação e a mídia na prevenção das violências. E o terceiro, chamado “É responsabilidade de todas e todos”, involucra diferentes atores sociais para combater atitudes e comportamentos que permitam, encorajem ou tolerem essa violência, tratando-a como algo normal.
A campanha está sendo implementada em todos os países da região de maneiras distintas: desde as adesões de governos, como os da Costa Rica e Colômbia, da Suprema Corte de Justiça da Guatemala e do parlamento centro-americano, até campanhas de mobilização social em Honduras e Uruguai.
No Brasil, a campanha foi implementada em diferentes âmbitos: o projeto Smart Women visa melhorar a segurança de mulheres e meninas vítimas e sobreviventes da violência, facilitando o seu acesso aos serviços de apoio existentes na Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, através do desenvolvimento e divulgação de um software aplicativo para smartphones.
Além disso, o programa Safe and Sustainable Cities, que em português está sendo chamado de “Confio no meu Rio”, está sendo implementado pela ONU Mulheres, em conjunto com a ONU Habitat e o UNICEF, no Rio de Janeiro. O projeto tem como objetivo qualificar e ampliar a coleta de dados de violência sobre mulheres, jovens e crianças nas relações público e privadas, aumentar a sensibilização social e o compromisso das autoridades públicas e ampliar a alocação de recursos e esforços para o empoderamento das mulheres e para a proteção das crianças em territórios de alto risco do município.
Qual é a opinião da senhora sobre a Central de Atendimento à Mulher (Disque 180)? Por que há muitas mulheres que ainda têm medo de denunciar seus agressores?
O Ligue 180 é uma importante ferramenta de apoio às vítimas de violência e à população em geral em todo o país. A Lei Maria da Penha, de 2006, foi um passo extremamente importante porque marcou, ao mesmo tempo, o fim em termos legais da impunidade dos agressores, quase vista como natural, e o início de uma mudança profunda na forma como a violência contra as mulheres era abordada e tratada pelo Estado e pela sociedade. Uma prova disto é a ampla disseminação da existência da lei, hoje reconhecida por mais de 80% da população brasileira.
Apesar de ter dado um importante passo, o sistema de justiça brasileiro reconhece de forma irregular a gravidade da violência doméstica e familiar. Ainda que a adoção da lei represente um avanço para dar visibilidade ao problema da violência nas relações familiares e para pressionar o Estado a cumprir os compromissos assumidos com a comunidade nacional e internacional na defesa dos direitos humanos, o reconhecimento das desigualdades de gênero e como estas afetam a vida da mulher e seu desenvolvimento ainda são incipientes.
Lamentavelmente, a violência contra as mulheres é generalizada e faz-se necessária uma profunda mudança cultural para que alcancemos a igualdade de gênero no Brasil. As raízes da violência de gênero decorrem da discriminação persistente e contínua contra as mulheres, e esta violação fundamental dos direitos humanos infelizmente continua a ser generalizada. Daí o medo de denunciar o agressor.
Por isso precisamos trabalhar continuamente para conscientizar a sociedade sobre a importância de erradicar a violência de gênero e de proteger os direitos de todas as mulheres brasileiras.
Mulheres e crianças são os dois grupos mais vulneráveis ao tráfico de seres humanos, gostaríamos de saber quais são as ações desenvolvidas pela ONU Mulheres para minimizar este quadro?
Jovens líderes indígenas de quatro comunidades Guarani e Ayoreo, ao longo da fronteira Brasil-Paraguai, agora têm a capacidade de identificar violações de direitos humanos, particularmente os sinais de tráfico. Como resultado de um programa da ONU Mulheres na região em 2011, os casos não documentados de violações de direitos humanos e tráfico que afetam uma população de 4 mil mulheres indígenas foram identificados e foram iniciados mecanismos de prevenção nas comunidades. A Secretaria Nacional de Justiça do Brasil convidou as ONGs locais para replicar a metodologia como parte de seu Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas. A ONU Mulheres contribuiu ainda para a formulação do II Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas, em parceria com 21 ministérios e instituições do Governo Federal, bem como do UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Nos últimos 5 anos, quanto evoluiu o processo em prol da equidade de gênero no Brasil?
Nas últimas décadas, testemunhamos grandes avanços ao redor do mundo: atualmente, 130 países possuem leis específicas que penalizam a violência doméstica, algo inimaginável há 20 anos. No entanto, ainda nos encontramos distantes de nossos objetivos de que milhões de mulheres e meninas vivam livres de discriminação e violência.
Ainda é necessário o estabelecimento de políticas públicas que facilitem a inserção da mulher no mercado, tais como creches e lavanderias públicas, por exemplo. Mas apenas o desenho e a implementação eficaz de políticas que visem a conciliação entre trabalho e família não resolverá o problema. As políticas devem vir acompanhadas de uma mudança cultural, onde os homens exerçam cada vez mais os papéis de cuidado que hoje em dia são quase exclusivamente associados às mulheres.
Empoderar as mulheres e promover a equidade de gênero em todas as atividades sociais e da economia são garantias para o efetivo fortalecimento das economias, o impulsionamento dos negócios, a melhoria da qualidade de vida de mulheres, homens e crianças, e para o desenvolvimento sustentável.
Acesse em pdf: Diretora regional da ONU Mulheres comenta sobre a violência contra a mulher no Brasil (Universidade Livre Feminista – 16/01/2013)