Posicionamento inédito do conselho reacende o debate sobre a necessidade de o Estado priorizar a abordagem do tema como questão de saúde pública e não religiosa.
(Agência Patrícia Galvão) O Conselho Federal de Medicina (CFM) e os 27 conselhos regionais de medicina (CRMs) anunciaram hoje (21/03) pela primeira vez seu posicionamento em relação ao aborto no Brasil: são favoráveis à descriminalização até a 12ª semana de gestação, com base no direito à autonomia das mulheres e no problema de saúde pública envolvido na sua criminalização.
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O CFM soltou uma nota pública explicando sua posição (acesse na íntegra no link abaixo). Com isso, ela passa a recomendar que na Reforma do Código Penal Brasileiro, em tramitação no Congresso Nacional (PLS 236/2012), o aborto seja descriminalizado em quatro situações: quando houver risco à vida ou à saúde da gestante; se “a gravidez resultar de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”; se for “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos”; e “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação”.
Atualmente, a prática do aborto só não é considerada crime em casos de violência sexual e risco de vida à gestante, segundo o Código Penal e, por entendimento do Supremo Tribunal Federal (SFT), nos casos de anencefalia.
Segundo a nota do CFM, a deliberação alcançou maioria entre os 400 mil médicos brasileiros que a entidade representa. O conselho informa que, para chegar a este posicionamento, os órgãos regionais se debruçaram sobre o tema durante vários meses, ouvindo representantes de diferentes segmentos e analisando inúmeros estudos e contribuições. Além disso, o CFM afirma ter chamado representantes de grupos religiosos para colaborar, apresentando seu ponto de vista. Os aspectos considerados para o posicionamento foram, segundo a nota, éticos e bioéticos; epidemiológicos e de saúde pública; sociais; e jurídicos.
“Este conjunto de contribuições levou ao posicionamento adotado”, afirma o texto do CFM, complementando: “Concluiu-se que a prática de abortos não seguros (realizados por pessoas sem treinamento, com o emprego de equipamentos perigosos ou em instituições sem higiene) tem forte impacto sobre a Saúde Pública. No Brasil, o abortamento é uma importante causa de mortalidade materna no país, sendo evitável em 92% dos casos. Além disso, as complicações causadas por este tipo de procedimento realizado de forma insegura representam a terceira causa de ocupação dos leitos obstétricos no Brasil. Em 2001, houve 243 mil internações na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) por curetagens pós-abortamento”.
No campo social, o conselho considerou ainda que sofre mais com essa realidade quem tem menos recursos: “levou-se em consideração que as estatísticas de morbidade e mortalidade da mulher em decorrência de práticas inseguras na interrupção da gestação são ainda maiores devido à dificuldade de acesso à assistência adequada, especialmente da parcela menos favorecida da população”, pontua.
Em coletiva de imprensa para anunciar a posição inédita, o presidente do conselho, Roberto D´Ávila, explicou que o posicionamento representa que a maioria da autarquia caminha no sentido de defender uma autonomia plena da mulher para decisão. “A decisão pertence à sociedade brasileira, através do Congresso Nacional; o que nós faremos foi encaminhar uma proposta de mudança no código penal aos 15 juristas que estudam o assunto”, destacou.
Debate
O posicionamento favorável à descriminalização até a 12ª semana por uma associação médica de peso institucional no Brasil lançou nova luz ao debate. Entidades médicas favoráveis à abordagem da questão no campo da saúde pública endossaram a posição do CFM.
É o caso da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “A Febrasgo ficou muito satisfeita com o posicionamento, é um apoio muito importante que vai se somar ao de outros atores da saúde, como o Conselho Federal de Psicologia”, afirma Olímpio Barbosa Moraes Filho, vice-presidente da região nordeste da entidade.
Para ele, as mortes causadas pelo aborto inseguro, ante a criminalização, são um grave problema de saúde pública que não recebe a devida atenção da sociedade brasileira. “Quem é contra o aborto, inclusive, deveria ser a favor da descriminalização, pois a abordagem pelo viés sanitário e de saúde pública poderia diminuir o alto indíce de reincidência na prática por meio de indicações de métodos contraceptivos mais seguros para quem praticou um aborto”, pondera.
“Acho que o Conselho fez muito bem em se posicionar”, comemora o prof. Aloísio José Bedone, da área de Ginecologia da UNICAMP, também integrante da Febrasgo. O médico declara apoio à avaliação do CFM: “O aborto inseguro leva à mortalidade de muitas mulheres, na grande maioria jovens e que deixam por vezes outros filhos órfãos. Sem mencionar que a lei praticamente só funciona para as mulheres que são pobres, porque as que têm mais recursos conseguem ter acesso ao aborto seguro, mesmo com a criminalização”, avalia. “O aborto é uma questão de saúde pública e não legal”, conclui o médico.
Segundo a dra. Verônica Gomes Alencar, ginecologista e coordenadora do Projeto Iluminar, de atenção ao aborto previsto por lei, na região de Campinas, a decisão do CFM deve trazer avanços inclusive para os casos em que o direito ao aborto já é legal, uma vez que ainda existe entre boa parte da categoria muita resistência na realização do procedimento. “Na prática, mesmo nos casos em que o aborto é garantido por lei, muitos médicos têm dificuldade de assumir essa responsabilidade. Há profissionais que até hoje pedem autorização judicial para casos de anencefalia. A decisão do conselho contribui para mudar esse contexto”, explica.
“O fato de o CFM ter tomado essa decisão é um dos maiores avanços que a gente já teve”, considera ainda a dra. Verônica. Segundo a médica, o posicionamento é extremamente importante para o processo de descriminalização. “O CFM traz para o cenário jurídico, moral e religioso a avaliação de uma instituição reconhecida e responsável pela qualidade da saúde e vida das mulheres. O conselho demonstra o cuidado da classe médica para que as mulheres não morram por praticar o aborto inseguro ou sejam punidas por cometer esse ‘crime’”, avalia. “As mulheres têm esse direito e os médicos garantem que farão o aborto seguro, é só descriminalizar”, aponta.
Já setores religiosos, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a bancada evangélica, declararam sua condenação ao posicionamento dos médicos a veículos de comunicação.
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