A PEC das Domésticas, por si só, não estimulará a formalização, ela precisa ser acompanhada de outras medidas, na avaliação de Ana Carolina Querino, coordenadora do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça no Mundo do Trabalho Escritório da OIT no Brasil. Entre as medidas, Ana Carolina cita a necessidade de uma mudança cultural e recomenda a criação de mecanismos de queixa e de inspeção do trabalho de forma facilitada, conforme recomendado na Convenção 189 da OIT. Confira entrevista:
Ainda predomina na sociedade uma cultura de responsabilização da mulher em relação à casa, aos filhos e à família – trabalho muitas vezes invisível, não remunerado e pouco reconhecido. Essa falta de valorização se reflete na profissão das domésticas? Onde estão as raízes da falta de direitos dessa categoria até hoje?
De fato, essa responsabilização existe e ela não se restringe a sociedade brasileira, é uma questão que está na base da discriminação de gênero em todo mundo. Mas, embora isso ainda predomine, é uma noção que está sendo questionada e existem ações que visam alterar esse desequilíbrio da divisão do trabalho doméstico. A convenção 156 da OIT, por exemplo, busca valorizar essa divisão entre mulheres, homens, Estado e empresas, indicando a adoção de medidas de não discriminação de trabalhadores e trabalhadoras de atividades familiares.
E isso se reflete de fato na profissão das domésticas, elas estão na ponta dessa cadeia de cuidado. Na medida em que as mulheres passam a participar mais no mercado de trabalho, uma vez que essa noção de co-responsabilidade social das tarefas domésticas ainda não está difundida e ainda existem poucas políticas públicas e empresariais que possibilitem uma melhor divisão de responsabilidades, o trabalho de cuidados e doméstico recaiu sobre outras mulheres que foram contratadas para assumir essa tarefa.
O trabalho doméstico e de cuidado familiar não tinha reconhecimento econômico, não era uma atividade valorizada, embora seja muito importante, pois, se não houvesse mulheres cuidando desses fatores, outras mulheres e homens não poderiam estar se dedicando às tarefas reconhecidas como produtivas pelo conjunto da sociedade.
O trabalho doméstico é uma atividade que não tem visibilidade, nem reconhecimento de valor. Então, mesmo que as domésticas realizem isso de forma remunerada, existe uma idéia geral equivocada de que as mulheres teriam um dom natural pra desempenhar essas tarefas, e uma vez naturalizado esse trabalho, cria-se uma noção também equivocada de que ele não exige desempenho, nem qualificação.
Então, aí está parte das raízes dessa falta de direitos. E há ainda uma intersecção da questão de gênero com a questão racial. O trabalho doméstico no Brasil, comparado com outros contextos na própria América Latina, é executado por grupos étnicos raciais que são desvalorizados e sobre os quais recai uma cultura de caráter de servidão fortemente marcado. O trabalho doméstico foi a profissão que as mulheres negras desempenharam e por da qual conseguiram garantir a reprodução familiar no pós abolição. Eram as mulheres negras que tinham empregos mais estáveis, enquanto os homens se ocupavam de tarefas mais esporádicas, de ‘bicos’.
A união entre a desvalorização no ambiente doméstico e esse caráter servil histórico está por traz dessa falta de direitos dessa categoria, que foi considerada como tendo uma lógica distinta das demais e, portanto, não deveria ter os mesmos direitos de outras atividades profissionais – situação injusta que permaneceu no Brasil até a PEC.
A 100ª Conferência da OIT, realizada em 2011, aprovou a Convenção 189 sobre trabalho decente para os trabalhadores domésticos. A PEC responde plenamente aos critérios de trabalho descente colocados por essa convenção?
A PEC tem uma importância simbólica e prática muito concreta, porque elimina a distinção entre as trabalhadoras domésticas e outras categorias de trabalhadores. Elimina essa crença de que a trabalhadora doméstica não é trabalhadora, então só pela sua existência já traz um grande destaque simbólico.
A convenção da OIT tem que ser mais ampla que as legislações nacionais, porque ela chama os Estados membros a aderirem e, assim, coloca patamares mínimos que precisam ser instituídos em diferentes contextos de diferentes países. Então, a legislação brasileira, mesmo antes da PEC, já tinha alguns pontos que eram mais avançados que a Convenção 189, como estabelecer a idade mínima de 18 anos para exercer o trabalho doméstico, por exemplo.
Agora, entre as medidas indicadas pela convenção que poderiam ser indicadas para além da PEC, há a de criação de mecanismos de queixa e de inspeção do trabalho de forma facilitada. Essas são medidas não contempladas na PEC que poderiam ser trabalhadas no Brasil, claro que em conformidade com a legislação nacional, respeitando pontos como a autorização de acesso ao domicílio, etc.
Segundo dados do Ministério da Previdência, o grupo de domésticos, que correspondia a 81,9% em 2001, caiu para 70% em dez anos. Já o segmento de diaristas subiu de 18,1% para 30% no mesmo período, de acordo com dados do IBGE. A PEC das Domésticas pode estimular ainda mais essa migração? Nesse cenário, o que é preciso ser feito em termos de regularização das diaristas?
É importante ressaltar que aí seriam duas modalidades distintas de trabalhadoras domésticas: uma presta serviços em mais de um domicílio e a outra em apenas um. Em relação às diaristas, existe toda uma polêmica de que a lei é ambígua em relação à existência de vínculo empregatício, então essas mulheres estariam em grande maioria excluídas do acesso a carteira de trabalho e de ter alguns direitos garantidos. Existe na jurisprudência uma referência de que quem trabalha 3 vezes por semana ou mais numa mesma casa teria sim direito ao registro, que isso caracterizaria o vínculo – o que também é algo que não está regulamentado e suscita polêmica.
Infelizmente, essa tem sido a saída para alguns empregadores fugirem da obrigação de assinar a carteira: eles preferem não configurar o vínculo com a diarista. Mas, é importante destacar que, embora ainda não haja um reconhecimento legal e uma obrigatoriedade no sentido de reconhecer esses direitos, isso não exclui os empregadores de uma responsabilidade nesse sentido. O ideal seria que houvesse um percentual, que respondesse a direitos como INSS, FGTS, e outros, incorporado no valor cobrado nessas diárias, mas isso é algo que ainda não está difundido no Brasil.
Outra questão que é importante, para além de pagar proporcionalmente, seria colocar em discussão essa noção de vínculo. Muitas vezes você tem uma trabalhadora que presta serviço a domicilio há 5, 10 anos para uma mesma família e ainda assim não tem carteira assinada. Esse tempo todo não seria uma justificativa para configurar o vínculo trabalhista?
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no Brasil há cerca de 7 milhões de empregados domésticos — 70% deles não possuem contrato de trabalho formalizado, e nove em cada dez são mulheres. A PEC deve estimular a formalização? E por que a taxa de homens trabalhando nesse ramo é tão baixa?
Em relação à baixa participação de homens, isso está relacionado ao que eu comentei na primeira questão: essas tarefas ainda estão muito associadas à divisão sexual do trabalho doméstico tradicional, o que desencoraja os homens de exercê-las. Os poucos que existem são jardineiros, motoristas, caseiros – ou seja, desempenham atividades distintas das desempenhadas por mulheres. Então, mesmo entre os trabalhadores domésticos há uma divisão sexual do trabalho. E também desigualdades: os homens têm um índice de formalização maior e costumam ganhar mais.
Agora, se a PEC por si só estimulará a formalização, eu acho que não, ela precisa ser acompanhada de outras medidas. O papel dela é acabar essa noção de subcategoria de trabalhadores, esse é o principal papel da PEC. Mas, ainda tem uma questão cultural a ser resolvida. Em relação à formalização já tinham sido adotadas algumas medidas, como possibilidade do pagamento da trabalhadora com carteira assinada ser descontado do Imposto de Renda do empregador. Foi adotado esse incentivo fiscal e ele ainda é muito pouco conhecido. E outro tipo de ação que poderia contribuir com o aumento da formalização seria de fato trabalhar com a parte cultural no sentido de promover a valorização do trabalho doméstico, tanto de quem realiza como de quem contrata. E também adotar medidas como as previstas na convenção 189 de facilitar os mecanismos de queixa e a inspeção para reforçar o cumprimento da lei.