(Agência Patrícia Galvão) O enfrentamento ao racismo é uma das metas de políticas e programas prioritários desenvolvidos pelos órgãos públicos? As equipes estão treinadas para reconhecer a diversidade de sujeitos e de demandas? O quesito raça/cor é preenchido na instituição segundo as categorias de classificação do IBGE?
Perguntas como estas parecem simples, mas podem ser o primeiro passo no enfrentamento de um grave problema: o racismo institucional – que se mantém na estrutura da sociedade brasileira, muitas vezes, pela simples inércia da gestão pública em identificar e combater o problema.
Definido como o fracasso das instituições em garantir direitos e acesso a serviços às pessoas em virtude da sua raça/cor e sexo, o racismo institucional se expressa tanto no interior das instituições – desde os processos seletivos e programas de progressão de carreira – quanto no processo de formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas.
Por isso, especialistas destacam a urgência de se criarem mecanismos capazes de quebrar a invisibilidade do racismo institucional, estabelecendo novas proposições e condutas, sobretudo na gestão pública.
Para auxiliar nessa frente, um grupo de trabalho – formado por especialistas de organizações feministas e do movimento negro, do Governo Federal e do Sistema ONU – elaborou duas publicações inéditas no País: o “Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional e Desigualdade de Gênero” e o texto “Racismo Institucional – uma abordagem teórica“.
As publicações foram pensadas como instrumentos para que instituições públicas se avaliem, construam seus diagnósticos, indicadores e estratégias, fortalecendo o compromisso do Estado e da sociedade com o enfrentamento do racismo institucional, vivenciado cotidianamente pela população negra no Brasil, sobretudo pelas mulheres.
O lançamento contou com a presença das ministras Luiza Bairros (Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial / Seppir) e Eleonora Menicucci (Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República / SPM/PR), e de representantes de agências da ONU (ONU Mulheres, OIT e PNUD).
Na ocasião, as ministras criaram um grupo de trabalho conjunto para enfrentamento ao Racismo Institucional e Desigualdade de Gênero nas suas instâncias. O compromisso assumido pelas pastas resultará num termo de cooperação técnica para implementação de metas e ações que contribuam para reverter essas desigualdades.
Acesse: Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional e Desigualdade de Gênero
>> Sugestão de fontes:
Para apoiar a cobertura da imprensa, a Agência de Notícias Patrícia Galvão entrevistou especialistas envolvidas na produção das publicações e compilou dados sobre o tema.
Políticas universais não bastam; instituições precisam ser enérgicas para enfrentar o problema
Tatiana Dias Silva – coordenadora de Igualdade Racial do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Email: [email protected] – Tel.: (61) 3315-5122
“As desigualdades racial e de gênero estão na sociedade brasileira, contaminando as instituições. Todos os dados mostram isso: os de educação, escolaridade, desigualdade de rendimentos, nível de desemprego, acesso à Previdência, entre outros – não tem um indicador em que a gente não perceba as desigualdades.
Existe uma falsa crença de que políticas universais são neutras e garantiriam, por si só, o acesso de todos e todas aos direitos e políticas públicas, e isso faz com que, muitas vezes, as instituições não se debrucem sobre a temática do racismo institucional, o que acaba perpetuando o problema. Portanto, é fundamental discutir os mecanismos de produção e reprodução do racismo dentro das instituições.
As publicações ajudam a identificar situações e dão um apoio para enfrentá-las, então a expectativa é que, com o texto conceitual e o guia, as instituições se debrucem sobre isso, sejam corajosas para assumir essa temática e repensem a discriminação nas suas estruturas”.
O racismo contamina a formulação de políticas públicas, perpetuando desigualdades
Nina Madsen – socióloga e integrante do Colegiado de Gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea). Email: [email protected] – Tel.: (61) 3224-1791
“O racismo institucional faz parte de um sistema que estrutura nossa sociedade e, portanto, nosso Estado, que é um sistema racista. Ele é a dificuldade do acesso e da concretização dos direitos para a população negra no Brasil, que se expressa tanto no interior das instituições – desde os processos seletivos aos programas de progressão de carreira – quanto no processo de formulação, implementação e monitoramento das políticas públicas.
Seu enfrentamento requer uma ação enérgica, pois sem um olhar especializado e uma atitude para interromper, a lógica hegemônica se mantém. E, desse modo, as instituições não produzem dados agregados por raça/cor e não utilizam esses dados na hora de elaborar e avaliar políticas públicas, reproduzindo o racismo.
Essas publicações representam uma iniciativa bastante inovadora e inédita, porque condensam uma série de formulações que vêm sendo produzidas no Brasil ao longo dos últimos 15 anos e propõem um conceito de racismo institucional de uma maneira sistematizada. Representam um instrumento bastante forte e estratégico para se avançar no combate ao racismo dentro das instituições”.
É dever das instituições reverter desigualdades baseadas no gênero e raça/cor das pessoas
Ana Carolina Querino – coordenadora do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça no Mundo do Trabalho do Escritório da OIT no Brasil. Email: [email protected] – Tel.: (61) 2106.4620
“O racismo é um fenômeno ideológico que se manifesta de distintas formas e que preconiza a hierarquização dos grupos, atribuindo a alguns deles valores e significados sociais negativos que servem de justificativa para seu tratamento desigual. Concretamente, nossas sociedades foram estruturadas a partir da definição de lugares sociais para mulheres e para a população negra que não passam pelos espaços de poder e cidadania plena.
Sua versão institucional é uma de suas faces mais invisibilizadas e se refere tanto às falhas das instituições em garantir que todos e todas tenham acesso aos seus direitos fundamentais, como à falha em contribuir para a reversão das desigualdades baseadas no gênero e raça/cor das pessoas. Ou seja, o funcionamento das instituições permite que situações de exclusão de gênero e raça sejam perpetuadas na sociedade.
O compromisso assumido com o enfrentamento ao racismo institucional irá visibilizar a questão e também difundirá a noção de que todos e todas, enquanto indivíduos e enquanto instituições, têm um papel a cumprir no processo de desconstrução do racismo e da promoção da igualdade racial”.
Quebrar a invisibilidade do racismo institucional é fundamental
Jurema Werneck – médica, pesquisadora e coordenadora da ONG Criola. Email: [email protected] – Tel.: (21) 9626-7366
“O racismo institucional é um conceito que serve de ferramenta para evidenciar como o racismo se desenvolve fora das relações interpessoais, porque, para além de existir pessoas racistas, ele acaba contaminando a vida social e institucional em diferentes esferas. Então, esse conceito é uma forma de mostrar que o racismo não está apenas internalizado nas pessoas, mas, como ideologia, ele participa da organização política, social e institucional do Brasil.
A invisibilidade de como se dá essa participação no funcionamento de instituições e estruturas é uma fase própria desse sistema de exclusão, que, dessa maneira, se perpetua. Assim, essas duas publicações são ferramentas para descortinar esse processo e elas podem ajudar quem já tinha o compromisso de estar fazendo um enfrentamento ao racismo, previsto por lei, na gestão pública.
Nesse sentido, ter duas ministras assumindo o compromisso com o enfrentamento é muito importante, pois elas estão ratificando o compromisso que a lei estabelece e contribuindo, assim, para fazer um chamamento ao resto do Poder Executivo, uma vez que todos e todas que estão nos Ministérios, na Presidência, e também nos Estados e municípios têm a obrigação de fazer esse enfrentamento”.
A população negra, sobretudo as mulheres, continua tendo menor acesso a direitos e serviços
Nilza Iraci – presidenta e coordenadora de comunicação do Geledés – Instituto da Mulher Negra. Email: [email protected] – Tel.: (11) 3333-3444 e (11) 99584-0367.
“O racismo institucional e a desigualdade de gênero produzem a falta de acesso ou o acesso de menor qualidade aos serviços e direitos pela população negra, sobretudo pelas mulheres. Mas, para além disso, representa também a perpetuação de uma condição estruturante de desigualdade em nossa sociedade.
Reconhecer a existência dessa dimensão da desigualdade, tão profundamente marcada na sociedade e Estado brasileiro, é essencial para enfrentá-la. A população negra continua tendo menor acesso a direitos e a serviços que deveriam ser garantidos a toda a população brasileira, e que o Estado, por obrigação, deveria assegurar”.
Dados compilados nas publicações dão a dimensão do racismo institucional no Brasil:
>> Acesso à saúde: Segundo a PNAD de 2008, 40,9% das mulheres pretas e pardas acima de 40 anos de idade jamais haviam realizado mamografia em suas vidas, frente a 26,4% das brancas na mesma situação. A taxa de mortalidade materna entre as mulheres negras, em 2007, era 65,1% superior à das mulheres brancas.
>> Acesso à educação: De acordo com a PNAD de 2009, a distorção idade-série no ensino fundamental atingia a 22,7% da população negra, contra 12,4% da população branca. Já no ensino médio, a taxa de distorção era de 36,6% para a população negra e de 24% para a população branca.
>> Segurança pública: Considerando o país como um todo, o número de homicídios brancos caiu de 18,8 mil em 2002, para 14 mil em 2010, o que representa uma queda de 25,5% nesses oito anos. Já os homicídios negros tiveram forte incremento: passam de 26,9 mil para 34,9 mil, ou seja, aumentaram 29,8%.
>> Trabalho e renda: Dados indicam que com maior participação precária no mundo do trabalho e obtenção de renda inferior, negras e negros estão também em posição inferior em relação à capacidade contributiva para a Previdência Social. Neste cenário, não é coincidência, portanto, a maior participação das mulheres negras entre os grupos que vivem em extrema pobreza, conforme demonstram os gráficos a seguir:
Renda média da população, segundo sexo e raça/cor. Brasil, 2009