(O Globo) Na sala de estar as fotografias ocupam estante e paredes: imagens da viagem em família ao hotel fazenda em Minas Gerais, da celebração da união estável ano passado, e do crescimento do novo centro das atenções, a pequena Ana Beatriz, de 7 meses. Uma foto que salta aos olhos foi tirada para ilustrar uma campanha contra a homofobia. Isso porque José Barbosa vive há 12 anos com Vanessa Alves, travesti. Eles criaram Wellington Alves, hoje com 20 anos, casado com Jéssica Vilela, com quem teve a bebê. Moram todos juntos, “muito bem, obrigado”. É apenas da porta para fora que a família não tradicional vira uma questão e enfrenta a intolerância. Vanessa não escapou de agressão física quando criança e Wellington, do bullying na escola.
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Preconceitos como estes vêm sendo desconstruídos por constante ativismo e pela ciência. Este mês foi divulgado um dos maiores estudos sobre a adoção de crianças por casais homossexuais. A Universidade de Melbourne, na Austrália, entrevistou mais de 500 meninos e meninas nesta condição, e concluiu que não havia diferença estatística entre elas e as demais, em fatores como autoestima e comportamento emocional. Elas, inclusive, tiveram uma pontuação acima da média para coesão familiar e saúde em geral.
A pesquisa se soma à recente declaração da Associação Americana de Pediatria em prol da adoção: “Há um consenso cada vez maior, com base na extensa revisão da literatura científica sobre o tema, que mostra que crianças que crescem em famílias chefiadas por gays ou lésbicas não estão em desvantagem em qualquer aspecto significativo em relação aos filhos de pais heterossexuais”, afirmou em nota.
Longo trajeto de pesquisas e conquistas
O respaldo da ciência à homossexualidade ganhou peso na década de 1970, quando a forte reação de acadêmicos e ativistas conseguiu retirar o termo do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), a chamada “bíblia da psiquiatria”. Na prática, ela deixou de ser vista como doença. Em 1992, foi a vez da Organização Mundial de Saúde (OMS) revisar a Classificação Internacional de Doenças (CID). Ambos os guias servem de base para profissionais de saúde e pesquisadores.
Este ano, os transgêneros — grupo que inclui travestis, drag queens, transformistas e transexuais — também foram retirados do DSM. Em 2015, a mudança deverá ocorrer no CID.
— Quando a ciência é convocada a dar uma resposta, não tem sentido ela ir na contramão dos movimentos sociais e da conquista de direitos. A pesquisa acadêmica na área, no Brasil, talvez tenha começado a se dar a reboque dos movimentos sociais — afirmou a professora de Psicologia da Uerj, Anna Uziel, coordenadora do Lidis, centro de pesquisa da universidade sobre diversidade sexual e de gênero.
Presidente do grupo Arco Íris do Rio, Julio Moreira cita outros estudos que servem de base para a luta por direitos:
— Há pesquisas na área de biologia mostrando que mais de dez mil espécies de animais têm práticas homossexuais. Isto rebate o discurso de setores conservadores de que é um comportamento cultural, aprendido equivocadamente, e mostra que é natural — exemplifica Moreira, que ainda menciona pesquisas sobre violência homossexual e intolerância na escola.
Ativismo e ciência, inclusive, andam de mãos dadas neste momento no Brasil. O projeto de lei federal da ‘cura gay’, que será levado à votação direta no plenário da Câmara esta semana, tem sido fortemente questionado por especialistas e manifestantes nos constantes atos no país. Aprovado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, presidida por Marco Feliciano (PSC-SP), a proposta quer suspender trechos da resolução do Conselho Federal de Psicologia que proibiu profissionais de colaborar com eventos e serviços que ofereçam tratamento e cura de homossexuais, além de impedir a manifestação no sentido de reforçar o preconceito.
— Eles entendem, com estes dois parágrafos, que o conselho está impedindo o psicólogo de tratar o homossexual. Está impedindo de tratar a homossexualidade como doença, porque não é uma. O psicólogo não pode tentar mudar a orientação sexual de uma pessoa, até porque não tem como — critica Anna Uziel.
Enquanto isto, José Barbosa, aquele casado com Vanessa, usa o bom humor para questionar o projeto:
— Se este projeto passar, a Previdência vai falir de tanta gente tentando conseguir pensão de aposentadoria por invalidez — brinca.
O casal, por sinal, ri à toa. Ano passado firmou a união estável numa cerimônia coletiva no Tribunal de Justiça. Em breve, fará o casamento oficial, e Vanessa, a sonhada cirurgia de mudança de sexo. Antes dela, José se casou cinco vezes, sempre com mulheres. Não durava. Mas com Vanessa “foi amor à primeira vista”. Hoje, até filho e nora são engajados e participam de reuniões do Centro de Referência da Cidadania LGBT de Duque de Caxias.
— Jéssica (nora) foi grávida para a passeata gay. Até minha neta já entrou no movimento — lembrou Vanessa.
Já o casal Marcos Gladstone e Fábio Inácio adotou legalmente, há três anos, Felipe, hoje de 9 anos, e Davison, de 10.
— O processo levou só uns sete meses, porque ninguém quer adotar crianças mais velhas. Preferem bebês e brancos — comentou Gladstone.
Ele conta que, no início, o casal tinha medo de ser rejeitado pelas crianças. Conversas abertas foram construindo a relação da família. Analfabetos na época da adoção, os meninos atualmente estão entre os melhores da turma, gabam-se os pais. E sabem se defender:
— Para eles é uma situação natural. Um dia na escola um colega levantou o tema. O Davison respondeu que gostava de ter dois pais, até porque antes não tinha nenhum — lembrou Inácio.
O processo legal de conversão da união estável para casamento está em fase final. Com isso, os meninos terão os sobrenomes do casal. Haverá uma celebração pequena, porque em 2009, a festa no Alto da Boa Vista já reuniu 300 pessoas. Em vez disso, farão uma viagem de comemoração, em família, nos próximos dias, para Fortaleza.
Acesse o pdf: Novo álbum de família (O Globo – 30/06/2013)