30/06/2013 – O que fazer no day after com a energia das ruas, por Aldo Cordeiro Sauda e Marcia Camargos

30 de junho, 2013

(O Estado de S. Paulo) Na terça, o premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, disse que os protestos atuais foram orquestrados por forças que querem evitar o crescimento da Turquia e do Brasil – dois países que quitaram suas dívidas com o FMI e adotaram uma postura independente.

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No território nem tão livre das redes sociais

Os analistas perplexos que buscam, sem êxito, decifrar o enigma da suposta “primavera” nacional podem respirar aliviados. Da insurgente Turquia, uma luz atravessa o Atlântico para explicar o fenômeno. Segundo seu primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, uma conspiração das redes sociais visa a derrubar, de uma só penada, os governos do Brasil e da Turquia. Denúncia que, diga-se de passagem, peca pelo caráter delirante e falta de originalidade. A maioria dos ditadores árabes afetados pela “primavera” invocaram o fantasma sinistro do golpismo digital para entender os levantes que ocorreram no quintal de casa. Tanto eles quanto Erdogan espertamente fecham os olhos para a rica história de revoluções e levantes populares ocorridos muito antes do advento da internet e dos celulares, que marcaram toda a região desde a revolução dos Jovens Turcos, de 1908.

Já em solo verde-amarelo, a ideia de que as atuais mobilizações tenham por objetivo derrubar o Partido dos Trabalhadores vem ganhando força nas fileiras pró-governamentais. Elas seriam um aggiornamento da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Abririam caminho para a tomada do poder pelo Exército, sob direção do empresariado, que varreria qualquer vestígio sindicalista. Por que justo os empresários, que tanto lucraram nos últimos anos, pretenderiam depor Dilma, ninguém sabe responder. Mas terminam aí as comparações com a Turquia, onde, de acordo com Erdogan, trava-se um conluio de ateus e comunistas, turma obviamente antagônica aos golpistas tupiniquins. Apenas os une a crença de que os donos do Facebook e Twitter tecem uma armadilha para conquistar o mundo.

Para o bem da verdade, vale dizer que a noção de uma comunidade virtual onipotente extrapola o círculo dos defensores do status quo. Ela exerce igual fascínio entre os adversários da ordem. O tema “revolução das redes sociais” figura tanto no imaginário da Avenida Paulista quanto entre os intelectuais que vêm tentando interpretar os protestos. Da Turquia ao Brasil, o teórico poder do Facebook tem encantado a todos. Mas, nos lugares onde as insurgências populares conseguiram avançar a ponto de derrotar regimes autoritários, a magia da rede parece ter se desvanecido.

Hoje, em plena Praça Tahrir, o assunto causa desconforto. Os principais nomes reunidos em torno da internet no primeiro momento do levante tornaram-se, na melhor das hipóteses, figuras secundárias do quadro político. Ahmad Mayers, líder do Movimento 6 de Abril, que em 2011 desempenhou papel fundamental no processo que levou à renúncia de Hosni Mubarak, chegou a ser chamado de o “novo Che Guevara” por grande parte da imprensa internacional. Hoje, ilustrando o curto alcance das organizações baseadas no espontaneísmo digital, ele dirige um grupo fragmentado e com pouca importância no contexto egípcio.

Isso não significa que os ideais igualitários do Passe Livre estejam condenados a um inevitável ostracismo. Contudo, os sinais vindos do Oriente Médio são desalentadores. Quase todos os levantes dirigidos por atores políticos que negavam a necessidade de articulações com recortes programáticos foram substituídos por fraternidades políticas reacionárias. A força dos “irmãos”, baseada na disciplina e objetivos claros, se sobrepôs às direções jovens do mundo árabe. As vitórias da Irmandade Muçulmana no Egito e no Marrocos, e da corrente islâmica light na Tunísia, explicam-se antes por suas formas organizativas que pela ideologia. Enquanto a juventude secular discutia sobre horizontalidade, os militantes islâmicos cimentavam suas hierarquias nas massas.

Para agravar o panorama, somam-se aos limites da articulação digital suas evidentes fronteiras de classe e geração. Quando a Irmandade Muçulmana passou a arregimentar os camponeses do Delta do Nilo para manifestações no Cairo, os ativistas digitais nem sequer sabiam como lidar com aquele povo que inflava as ruas da cidade. Mais tarde, em fevereiro de 2012, frente à necessidade de recrutar o operariado urbano como última barreira à aliança entre militares e radicais islâmicos, os protagonistas da Primavera jogaram todas as fichas para construir, via Facebook, uma greve geral. A medida redundou em fracasso absoluto, sem a adesão de uma única fábrica.

É inegável que o Movimento 6 de Abril foi capaz de mover milhões, demolir ditaduras e reinventar os instrumentos de mobilização, utilizando as redes sociais com maestria. O mesmo se aplica ao Passe Livre. A política nacional não será a mesma após suas ousadias. Mas o que fazer no day after com a energia das ruas segue com a mesma centralidade nos dois lados do oceano. Bem mais poderoso que qualquer internet é o descontentamento socioeconômico que provocou as revoltas em ambos os países. De fato, um fantasma ronda não apenas a Europa, como também a África, a Ásia e as Américas. O diagnóstico de Marx, revisitado, é que deveria tirar o sono de Erdogan.

Aldo Cordeiro Sauda é cientista político
Marcia Camargos é historiadora com pós-doutorado pela USP

Acesse o pdf: Convocação profunda (O Estado de S. Paulo – 30/06/2013)

 

 

 

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