(Correio Braziliense) A denúncia de que órgãos de inteligência do governo norte-americano teriam mantido um esquema de monitoramento não autorizado da internet brasileira levantou dúvidas sobre o poder da legislação do país contra violações à privacidade na rede. A suspeita de que e-mails e dados pessoais tenham sido acessados sem autorização dos usuários colocou em pauta a discussão sobre a segurança cibernética em um âmbito civil. Uma ferramenta que poderia resguardar melhor os direitos dos internautas espera aprovação na Câmara há mais de um ano: o Projeto de Lei nº 2.126, de 2011, conhecido como marco civil da internet. Depois de ter a votação adiada seis vezes, o texto foi ressuscitado e pode finalmente se tornar realidade.
O projeto teve início em uma consulta na web, que contou com mais de 2 mil contribuições. Desde então, o texto sofreu várias modificações, sugeridas por especialistas e representantes do segmento, até resultar em uma proposta que se apoia em três pilares: liberdade de expressão, proteção da privacidade e neutralidade da rede (veja quadro). “Infelizmente, foi necessário o vazamento de informações para todo mundo descobrir o que era o marco civil. A aprovação desse projeto tornaria ilegal uma série de práticas que estão nas denúncias divulgadas, e hoje a lei não define (medidas contra elas)”, aponta o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do projeto.
O texto é considerado concluído, mas as denúncias de espionagem cibernética podem levar a mais mudanças para reforçar a segurança de dados pessoais na rede. Uma exigência apontada pela presidente Dilma Rousseff é a armazenagem obrigatória de dados brasileiros em servidores do país, o que exigiria uma adaptação física incalculável em empresas com grandes volumes de usuários, como o Google ou o Facebook. O projeto de lei voltou a passar por estudos técnicos e alguns parlamentares ainda questionam a questão da neutralidade da rede. O ponto garante aos usuários um uso democrático da internet, sem discriminação por tipo de serviço ou de pacote de dados.
Pronto
Especialistas acreditam que o marco civil está maduro para ser votado do jeito que está, sem novas determinações sobre a nacionalidade dos servidores ou mudanças no que diz respeito à neutralidade. “Futuras condições sobre a armazenagem desses dados podem ser feitas numa regulação posterior”, defende Carlos Affonso Pereira de Souza, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (leia entrevista abaixo).
Para Marcelo Branco, ativista e coordenador do projeto Software Livre Brasil, a versão atual do marco é a legislação do tipo mais moderna já proposta em qualquer país. “A minha dúvida é que texto vai à votação. Se for um texto em que a neutralidade seja diminuída ou até ameaçada, é um problema”, afirma o especialista, que acompanha desde o início a discussão do projeto. “Ficou revelado pelo Edward Snowden (ex-prestador de serviços da CIA que denunciou programas de espionagem dos Estados Unidos) que as operadoras contribuíram de alguma forma pelo grampeamento pela NSA (Agência Nacional de Segurança norte-america), então essas operadoras de telecomunicações perderam a legitimidade de se opor à cláusula da neutralidade”, acrescenta.
Uma legislação clara também determinaria parâmetros para as empresas de conteúdo on-line, que costumam basear suas políticas de uso nas leis dos países de origem. Os contratos de aceitação obrigatória hoje colocam o internauta em uma posição constrangedora, em que acaba fornecendo dados pessoais sem a certeza do destino das informações. Para o advogado especializado em direito digital Alexandre Atheniense, a lei brasileira tornaria qualquer cláusula contrária nula. “Se o cidadão é brasileiro, e as informações se aplicam no Brasil, consequentemente o caso se aplica à legislação brasileira. Já existe decisão no STJ à respeito”, aponta. E a medida valeria para qualquer país em que estivessem localizados os servidores. “Não basta dizer que a conta está nos Estados Unidos. O termo de uso só vale para cidadãos que usam (o serviço) nos EUA.”
Como fica
O marco civil da internet, ou Projeto de Lei nº 2.126 de 2011, foi colocado sob discussão pública há quatro anos. A última versão do projeto foi definida no ano passado e tem como principais pontos:
Garantia à liberdade de expressão
» O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, a não ser que desobedeça a uma ordem judicial de retirar o conteúdo infringente da rede.
Proteção da privacidade e dos dados pessoais
» O texto garante a inviolabilidade e o sigilo das comunicações pela internet, que só podem ser fornecidas mediante ordem judicial. Os registros de conexão devem ser guardados por um ano e só podem ser passados a terceiros por consentimento livre e expresso. A empresa prestadora do serviço fica obrigada a dar informações claras sobre a coleta, o uso, o tratamento e a proteção de dados pessoais dos usuários.
Garantia da neutralidade da rede
» Os pacotes de dados têm de ser tratados de forma isonômica, sem distinção de conteúdo, origem, destino ou aplicativo. Os provedores não podem bloquear, monitorar, filtrar, analisar ou fiscalizar o conteúdo dos pacotes de dados. O indivíduo também tem garantido o direito à manutenção da qualidade de conexão contratada.
Acesse o PDF: A web com regras mais claras (Correio Braziliense – 10/07/2013)