(Isto É) Na praça Tahrir, quando a noite cai, as mulheres não conseguem impedir a humilhação e a violência do sexo não consentido.
Os mais de 50 mortos no tiroteio no Cairo, na semana passada, foram destaque em praticamente todos os jornais brasileiros.
O massacre polarizou radicalmente o Egito. Especialistas decretam em seus artigos que as chances de um novo governo de consenso tornaram-se remotas. Nações se dividem entre condenar o golpe ou ignorá-lo. Enfim, política, diplomacia e mortes em massa fazem as manchetes. Mas são outros os números que quero trazer neste artigo. Entre 28 de junho e 3 de julho, 180 mulheres sofreram ataques sexuais no Cairo, segundo a Anistia Internacional. Serão os estupros uma arma de guerra?
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Organizações egípcias de proteção às mulheres entendem que sim e acusam os manifestantes pró-Morsi, da Irmandade Muçulmana, de espalhar o terror. Mas não há provas de que isso seja verdade. É certo que as posições da antes obscura Irmandade Muçulmana ficam cada vez mais nítidas no que diz respeito às regras de comportamento feminino. Comunicados oficiais do partido ainda durante o governo Morsi deixavam claro que, segundo a doutrina religiosa, o marido deve tutelar a mulher e não estabelecer com ela uma parceria. A violência sexual do marido contra a mulher não deve ser considerada um estupro. E a herança deve privilegiar os filhos em detrimento das filhas.
Por outro lado, há dezenas de vídeos na internet que mostram com assustadora clareza o que acontece na praça Tahrir quando a noite cai. No momento em que se forma uma roda de homens em torno de uma mulher o destino dela está traçado e nada pode impedir a humilhação e a violência do sexo não consentido. E não se vê nessas imagens, em geral feitas por cinegrafistas amadores, a intervenção dos militares responsáveis pelo golpe – e tão queridos pela população – na defesa às vítimas da praça Tahrir.
A agressão a mulheres não é novidade na cultura egípcia. Pesquisas do Centro Egípcio Pelos Direitos das Mulheres mostram que 98% das turistas que visitam o país sofrem algum tipo de abuso sexual, ainda que não sejam estupradas. Oitenta e três por cento das egípcias relatam já ter passado por algum episódio de violência sexual. E o mais alarmante: 62% dos egípcios admitem que molestam mulheres. Cinquenta e três por cento dos homens culpam as mulheres por levá-los a esse tipo de comportamento. Jornalistas da rede britânica BBC entrevistaram adolescentes egípcios, não necessariamente envolvidos em grupos pró ou contra Morsi, que confirmam essas estatísticas. Eles admitem que vão aos protestos apenas para olhar as mulheres e que, quando têm chance, tentam apalpá-las e até violentá-las. Alegam que elas estão vestidas de maneira provocativa (não cobertas pelo véu islâmico).
A meu ver, há mais do que estratégia de guerra nessa escalada de violência contra a mulher. Há ódio e preconceito brutais. Mulheres chegam aos hospitais com a genitália cortada a navalhadas. Não me parece que estamos falando apenas de estupros, mas de uma tentativa premeditada de calar a voz da mulher, impedi-la de sair às ruas e manifestar-se como cidadã. E que esse movimento não está contido nesse ou naquele partido, mas numa cultura que há séculos tolera atos horrendos de violência como a mutilação genital feminina. E o mundo inteiro sabe disso.
Ana Paula Padrão é jornalista e empresária
Acesse o PDF: Estupros como arma de guerra, por Ana Paula Padrão (Revista Isto É, 14/07/2013)