(O Globo) Numa das mais longas entrevistas já concedidas por um Pontífice (1h20m), sem perguntas pré-selecionadas, o Papa Francisco fez declarações surpreendentes que deixaram vaticanistas boquiabertos. De pé na classe econômica, no voo de volta a Roma, indiferente às turbulências que chacoalhavam o avião, Francisco defendeu veementemente os homossexuais, dizendo que “eles não devem ser discriminados e devem ser integrados à sociedade”. E perguntou: “Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, para julgá-la?”. Na mesma conversa informal, avançou sobre outros temas delicados: exaltou o papel das mulheres, “mais importantes que os bispos”, e falou que a complexa questão do divórcio precisa ser enfrentada pela Igreja.
Sobre a denúncia da revista italiana “L’Espresso” que envolve o monsenhor Battista Ricca — uma das primeiras nomeações do Papa como membro do IOR, o banco do Vaticano — num lobby gay, Francisco disse que o problema são todos os lobbies, de políticos, maçons e outros. E saiu em defesa de Ricca, ao afirmar que uma investigação mostrou que ele não cometeu crime algum.
Francisco considerou a viagem ao Brasil um sucesso e rasgou elogios ao povo: “É corajosa a vida dos brasileiros. Tem um grande coração, esse povo!”. Mas reconheceu que o Brasil — um dos maiores países católicos do mundo — está perdendo fiéis. E contou que os bispos do país estão preocupados. Para ele, a Renovação Carismática, com seus cultos mais calorosos, que chegou a criticar nos anos 70, é um dos caminhos para evitar o êxodo para igrejas concorrentes, como as pentecostais. O Papa, que assumiu o comando do Vaticano num momento crítico de escândalos de pedofilia e corrupção, disse que ainda não viu resistência interna às mudanças que pretende fazer na Igreja. Aos que acham, dentro do Vaticano, que a mensagem do Pontífice é inquestionável, ele avisou: “Eu gosto quando alguém me diz: ‘eu não estou de acordo’. Esse é um verdadeiro colaborador”. E terminou dizendo que a viagem ao Brasil foi cansativa, mas lhe fez bem espiritualmente.
Lobby gay e monsenhor Ricca
Sobre o monsenhor Ricca, fiz o que o direito canônico manda fazer, que é a investigação prévia. E, nessa investigação, não tem nada do que o acusam. Não achamos nada. Mas eu gostaria de dizer outra coisa sobre isso. Tenho visto que muitas vezes na Igreja se buscam os pecados de juventude, por exemplo. E se publica isso. Abuso de menores é diferente. Mas, se uma pessoa, seja laica ou padre ou freira, pecou e esconde, o Senhor perdoa. Quando o senhor perdoa, o Senhor esquece. Quando vamos confessar e dizemos que pecamos, o Senhor esquece, e nós não temos o direito de não esquecer. Isso é um perigo. O que é importante é uma teologia do pecado. Tantas vezes penso em São Pedro, que cometeu tantos pecados e venerava Cristo. E esse pecador foi transformado em Papa. Vocês veem muita coisa escrita sobre lobby gay. Eu ainda não vi ninguém no Vaticano com uma carteira de identidade dizendo que é gay. Dizem que há alguns. Quando alguém se vê como uma pessoa assim, devemos distinguir entre o fato de que uma pessoa é gay e fazer um lobby gay, porque todos os lobbies não são bons. Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, pra julgá-la? O catecismo da Igreja católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas devem ser integrados à sociedade. O problema não é ter essa tendência. Não! Devemos ser como irmãos. O problema é fazer lobby, o lobby dos avaros, o lobby dos políticos, o lobby dos maçons, tantos lobbies. Esse é o o pior problema.
Jovens e casamento homossexual
A Igreja já se expressou perfeitamente sobre isso. Eu não queria voltar (ao tema). Não era necessário voltar. Eu também não falei sobre o roubo, sobre a mentira. Para isso, a Igreja tem um doutrina clara. Queria falar de uma coisa positiva, que abre caminho aos jovens. Além disso, os jovens sabem perfeitamente qual a posição da igreja. (Neste ponto, é perguntado sobre qual é a posição do Papa). É a da Igreja. Sou filho da Igreja.
Sacramentos para divorciados
Essa é uma pergunta que sempre se faz. Essa mudança de época e também tantos problemas na Igreja, como alguns testemunhos de alguns padres, problemas de corrupção, do clericalismo… A Igreja é mãe. Ela cura os feridos. Ela não se cansa de perdoar. Os divorciados podem fazer a comunhão. Não podem quando estão na segunda união. Esse problema deve ser estudado pela pastoral matrimonial. Há 15 dias, esteve comigo o secretário do sínodo dos bispos para discutir o tema do próximo sínodo. E posso dizer que estamos a caminho de uma pastoral matrimonial mais profunda. O cardeal Guarantino disse ao meu antecessor que a metade dos matrimônios é nula. Porque as pessoas se casam sem maturidade ou porque socialmente devem se casar. A questão da anulação do casamento deve ser revisada. É complexa a questão da pastoral do matrimônio.
Segurança da Jornada
Os organizadores, tanto da nossa parte, quanto dos brasileiros… Eu vi que estava diante de um computador. Verdade, era tudo cronometrado, mas muito bonito. Depois tivemos problemas com a hipótese da segurança. Não houve um incidente em todo o Rio de Janeiro com esses jovens. Foi superespontâneo. Com menos segurança, eu pude estar com as pessoas, abraçá-las, saudá-las, sem carro blindado. A segurança é a confiança de um povo. Há sempre o perigo de um louco, mas para este temos o Senhor. A organização da Jornada, a parte artística, a parte religiosa, de música, foi muito bonita. Eles (os brasileiros) têm uma capacidade de se expressar! Ontem (anteontem), por exemplo, fizeram coisas belíssimas. Aparecida, para mim, foi uma experiencia forte, maravilhosa. Eu me lembro durante a conferência, eu queria ter ido sozinho, escondido, mas não era possível. Depois, o número de jovens. Hoje, o governador falou em três milhões. Não posso acreditar. Do altar até o final, toda a praia estava cheia, até lá onde fazia a curva. Me disse o vice-presidente que eram de 178 países.
Reforma no Vaticano
Os passos que eu fui dando nestes quatro meses e meio vão em duas vertentes. O conteúdo do que quero fazer vem das congregações dos cardeais. Me lembro que os cardeais pediam muitas coisas para o novo Papa, antes do conclave. Por exemplo: a comissão de oito cardeais, a importância de ter uma consulta de fora, e não apenas uma consulta interna. Muitas propostas foram feitas, como a reforma da secretaria dos sínodos, que a comissão sinodal tenha uma forma de consulta, como o consistório cardinalício, com temáticas específicas, como a canonização. A vertente dos conteúdos vem daí. A segunda é a oportunidade. A parte econômica, pensava em tratar no ano que vem, porque não é a mais importante. Mas a agenda mudou devido a circunstâncias que são de domínio público. O primeiro é o problema do IOR (banco do Vaticano). Como encaminhá-lo, como reformá-lo, como sanear o que precisa ser sanado? E essa foi então a primeira comissão. Depois tivemos a comissão dos 15 cardeais que se ocupam dos assuntos econômicos da Santa Sé. E por isso decidimos fazer uma comissão para toda a economia da Santa Sé. Se notou que o problema econômico estava fora da agenda. Mas essas coisas se alternam. Quando estamos no governo, vamos por um lado, mas, se chutam e fazem um golaço por outro lado, temos que atacar. A vida é assim. Eu não sei como o IOR vai ficar. Alguns acham melhor que seja um banco, outros que seja um fundo, uma instituição de ajuda. Eu não sei. Eu confio nas pessoas que estão trabalhando em cima disso. O presidente do IOR permanece, o tesoureiro também, enquanto o diretor e o vice-diretor pediram demissão. Não sei como a história vai terminar. E isso é bom. Não somos máquinas. Seja o que for, tem que haver transparência e honestidade.
Papa pede que rezem por ele
Sempre pedi isso. Quanto era padre, pedia, mas nem tanto e nem tão frequentemente. Comecei a pedir mais frequentemente quando passei a ser bispo. Preciso da ajuda do Senhor. Eu, de verdade, me sinto com tantos limites, tantos problemas, e também pecador. Peço a Nossa Senhora que reze por mim. É um hábito, mas que vem da necessidade.
Austeridade e resistências
As mudanças vêm de duas vertentes: do que pediram os cardeais e também o que vem da minha personalidade. Você (repórter) disse que eu fico na Santa Marta. Eu não poderia viver sozinho no palácio, que não é luxuoso. O apartamento pontifício é grande, mas não é luxuoso. Mas eu não posso viver sozinho. Preciso de gente, falar com gente, trabalhar com as pessoas. Quando os meninos da escola jesuíta me perguntaram se eu estava lá pela austeridade e pobreza, eu respondi: “Não, não, não”. (Estou) por motivos psiquiátricos. Psicologicamente, não posso. Os cardeais que trabalham na Cúria não vivem como ricos. Têm apartamentos pequenos. São austeros. Cada um tem que viver como o Senhor disse que tem que se viver. A austeridade é necessária para todos. Trabalhamos a serviço da Igreja. É verdade que há santos, sacerdotes, padres, gente que prega, que trabalha tanto, que vai aos pobres, se preocupa em dar de comer aos pobres. Tem santos na Cúria. Também tem alguns que não são muitos santos. E são esses que fazem mais barulho. Faz mais barulho uma árvore que cai do que uma floresta que nasce. Isso me dói. Porque são alguns que causam escândalos. Temos esse monsenhor na prisão (Nunzio Scarano, acusado de manipular grandes volumes de dinheiro não contabilizado). Uma coisa que nunca disse: a Cúria deveria ter o nível que tinha das velhas Cúrias, pessoas que trabalham. Os velhos membros da Cúria. Precisamos deles. Sobre resistência, se tem, eu ainda não vi. É verdade que aconteceram muitas coisas. Mas eu preciso dizer: eu encontrei ajuda, pessoas leais. Gosto quando alguém me diz: “Eu não estou de acordo”. Esse é um verdadeiro colaborador. Mas, quando vejo aqueles que dizem “Ah, que belo, que belo”, e depois dizem o contrário por trás, isso não ajuda.
O trabalho do Papa
Ser o bispo é belo. O problema é quando se busca ter esse trabalho. Assim não é tão belo. Mas, quando o Senhor chama para ser bispo, isso é belo. Tem sempre o perigo, o pecado de pensar com superioridade, como ser um príncipe Mas o trabalho é belo. Ajudar o irmão a ir adiante. O bispo tem que indicar o caminho. Me piace fare il vescovo. Eu gosto de ser bispo. Em Buenos Aires, eu era tão feliz!
Perda de fiéis da Igreja no brasil
É verdade, as estatísticas mostram. E isso é um problema que incomoda os bispos brasileiros. Eu vou dizer uma coisa: nos anos 1970, início dos 1980, eu não podia nem vê-los (os carismáticos). Uma vez, falando sobre eles, disse a seguinte frase: “Eles confundem uma celebração musical com uma escola de samba”. Eu me arrependi. Vi que os movimentos bem assessorados trilharam um bom caminho. Agora, vejo que esse movimento faz muito bem à Igreja em geral. Em Buenos Aires, eu fazia uma missa com eles uma vez por ano, na catedral. Vi o bem que eles faziam. Esses movimentos são um graça para a Igreja. A Renovação Carismática não serve apenas para evitar que alguns sigam os pentecostais. É importante para a própria Igreja, a Igreja que se renova.
Relação com Bento XVI
A última vez em que houve dois ou três Papas, eles não se falavam. Estavam brigando entre si para ver quem era o verdadeiro. Eu fiquei muito feliz quando ele se tornou Papa. Quando renunciou, foi, pra mim, um exemplo muito grande. É um homem de Deus. Alguns me perguntam: como dois Papas podem viver no Vaticano? Eu achei uma frase para explicar isso. É como ter um avô em casa. Um avô sábio. Na família, um avô é amado, admirado. Sobre o problema grave dos Vatileaks (vazamento de documentos secretos), ele me disse tudo com simplicidade. Tem uma coisa que não sei se vocês sabem: em 8 de fevereiro, no discurso, ele falou: “Entre vocês está o próximo papa. Eu prometo obediência”. Isso é grande.
Sobre o pensamento Jesuíta
É uma pergunta teológica. Os jesuítas fazem votos de obedecer ao Papa (…). Eu me sinto jesuíta na minha espiritualidade, a que tenho no coração. Em três dias, vou festejar com os jesuítas Santo Inácio numa missa. Não mudei de espiritualidade. Sou Francisco franciscano. Me sinto jesuíta e penso como jesuíta.
O melhor e o pior de ser Papa
Não sei como responder a isso, de verdade. Coisas ruins, ruins, não aconteceram. Coisas belas, sim. Por exemplo, o encontro com os bispos italianos, que foi tão bonito. Como bispo da capital da Itália, me senti em casa com eles. Uma coisa dolorosa foi a visita a Lampeduse, me fez chorar. Me fez bem. Quando chegam esses barcos (com imigrantes), que os deixam a algumas milhas de distância da costa e eles têm que chegar (à costa) sozinhos, isso me dói, porque penso que essas pessoas são vítimas do sistema socioeconômico mundial. Mas a coisa pior é uma ciática. É verdade, tive isso no primeiro mês. Para uma entrevista, tive que me acomodar numa poltrona, e isso me fez mal, era dolorosíssimo, não desejo a ninguém.
Acesse o PDF: A benção aos gays (O Globo, 30/07/2013)