(Valor) Uma análise aleatória das eleições nos mais variados países do mundo faz realçar, com facilidade, uma peculiaridade brasileira: no país presidido por Dilma Rousseff, que tem Marina Silva como a segunda colocada nas pesquisas de intenção de voto para a sucessão, mulher na política é um fenômeno raro.
Argentina e Chile estão em pleno processo eleitoral. Na Argentina, metade da Câmara dos Deputados e um terço do Senado serão renovados. Quem chega a Buenos Aires e se interessa pelo tema percebe que na capital argentina a liderança na disputa para o Senado está com Gabriela Michetti, conservadora apoiada pelo prefeito Mauricio Macri. Para a Câmara, a lista mais cotada é a encabeçada pela deputada Elisa Carrió, de centro-esquerda. De cada cinco parlamentares argentinos, duas são mulheres. O Congresso é eleito pelo sistema proporcional de lista fechada.
No Chile, as eleições são gerais e a escolha parlamentar é distrital. A disputa pela presidência deve levar para o segundo turno a ex-presidente Michelle Bachelet e a ex-ministra do Trabalho Evelyn Matthei. Não há cotas eleitorais de gênero no país e as lideranças feministas deploram o fato de apenas 14% da Câmara ser formada por mulheres, percentual que não deve se elevar muito este ano, já que 80% dos candidatos ao Legislativo são homens.
Por que tão poucas mulheres no Congresso?
O Chile está abaixo da média mundial, mas longe da aberração brasileira: No Brasil, existem 46 deputadas federais ou 8,9% do total. Nenhuma faz parte da mesa diretora, uma única preside comissão (a de cultura) e apenas uma exerce liderança partidária. Não por acaso, ambas do PCdoB: a fluminense Jandira Feghali e a gaúcha Manuela D”Ávila.
A União Parlamentar Internacional (UPI) compila a composição da Câmara de 189 países desde 1997. Segundo o levantamento fechado em julho, o Brasil está em centésimo-vigésimo lugar em participação feminina. Na América Latina, ocupa o penúltimo posto, superando apenas o Panamá. Na África subsaariana, a média é de 20,9% de parlamentares mulheres.
Especialistas em gênero e representação política divergem sobre qual a explicação para a particularidade brasileira, mas convergem em um ponto: a lei que estabeleceu a cota de 30% de candidaturas femininas para o Congresso não funcionou. Era um fracasso já delineado nas primeiras eleições sob o novo sistema, em 1998 e 2002, cuja explicação não provoca muita polêmica. Com o sistema proporcional de lista aberta, os partidos e alianças podem preencher a cota com candidaturas decorativas, só para constar.
A lei brasileira estabelece que ganha quem tem mais voto na coligação e aí o poder das cúpulas de induzir o resultado é relativamente pequeno. No PT, as mulheres representam 28% da composição do diretório nacional, mas apenas 10 de seus 89 deputados federais são do sexo feminino. No PSDB, 37 dos 212 integrantes do diretório nacional são mulheres. Mas na Câmara, as deputadas tucanas somam apenas 6% da bancada.
Não é absurdo supor que a ínfima participação das mulheres no Congresso brasileiro afeta a própria representatividade do Legislativo. De todas as diferenças que a Câmara tem em relação ao povo que representa, esta talvez seja a maior delas.
O enigma é entender como se construiu esta situação. A explicação cultural é tentadora. Uma pesquisa comparativa feita periodicamente em 80 países, a “World Values Survey”, permite inferir que o pensamento brasileiro é menos igualitário que o de outras nações latino-americanas em algumas questões cruciais. Dos pesquisados brasileiros em 2006, 30,5% afirmaram que os homens são mais talhados para a liderança política do que mulheres. É o segundo maior percentual da região, inferior apenas ao chileno.
Na mesma pesquisa, 31,7% dos entrevistados brasileiros disseram que os homens são mais preparados para o mundo dos negócios. É o maior índice latino-americano. Apenas 21,9% dos mexicanos e 12,1% dos peruanos pensavam do mesmo modo. Mas os dados da pesquisa mostram uma situação ambígua, como assinalou um pesquisador, Ednaldo Ribeiro, da Universidade Estadual de Maringá (PR).
Os brasileiros estão entre os que discordam com maior ênfase do conceito de que é mais importante para um homem do que para uma mulher ter educação universitária, por exemplo. A violência contra a mulher é condenada pelos pesquisados brasileiros como o mesmo vigor registrado pelos que foram entrevistados nos Estados Unidos. Fica claro que não é apenas o machismo que explica a sub-representação.
Uma explicação alternativa pode estar na forma como candidatas mulheres se inserem no processo eleitoral. Muitas entram no parlamento por serem casadas ou filhas de políticos, mas isto está longe de ser o traço distintivo: o parentesco também é uma porta para homens terem acesso à Câmara.
Salvo as que se arriscam por partidos de esquerda, a candidata mulher em geral se move em um nicho: é a mãe, a organizadora do espaço privado, a dona de casa, que entra em cena propondo uma espécie de “olhar generoso” sobre a atividade pública. A estratégia do nicho sempre tem êxito garantido, mas com limites claros em sua expansão.
Na Argentina partiu-se deste ponto, com o mito de Evita Perón, a atriz de filmes baratos, que teve a sua vida de prodígios, seu martírio e o seu culto como santa. Mas os espaços pré-estabelecidos já foram ultrapassados há muito tempo. Parlamentar durante doze anos, a atual presidente Cristina Kirchner estava no equivalente argentino à CCJ quando o marido era um obscuro governador de província.
Antes disso, no início dos anos 90, o fervor privatista da era Menem teve um símbolo em Maria Julia Alsogaray, encarregada da liquidação das estatais. Uma deputada oposicionista, Victoria Donda, nasceu em um centro de torturas da ditadura, de pais executados pouco depois. A defesa pública do regime militar argentino é feita por outra mulher, Cecilia Pando. Talvez esta seja a medida da igualdade: quando se transita tranquilamente do heroísmo para a ignomínia, independente de raça, credo ou sexo.
Acesse o PDF: A marca da desigualdade (Valor, 01/08/2013)