04/08/2013 – Não julgarás, por Roseli Fischmann, sobre a homossexualidade e a religião

04 de agosto, 2013

(O Estado de S. Paulo) A resposta do papa Francisco em entrevista que concedeu já a caminho de Roma surpreendeu por seu posicionamento. Disse o papa: “Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”.

Parafraseando Armstrong, talvez tenha sido um pequeno passo para o sacerdote e bispo Bergoglio, considerando suas tão divulgadas práticas de proximidade a seus fiéis e à vida cotidiana, mas um grande passo para um papa, como chefe da Igreja Católica. As reações não tardaram. Houve quem procurasse pingar os “is” da fala, como nem mesmo o pontífice se preocupou em fazer, interpretando o que estaria nas entrelinhas de sua menção ao catecismo para dizer que em substância nada mudara. Mas houve os que se manifestaram em direção a compreender o gesto, testemunhando o passo e propondo ir além, como fez o Grupo Gay da Bahia, sugerindo que fosse criada a Pastoral dos Gays.

Para a garantia da laicidade do Estado brasileiro, que está inscrita na Constituição Federal, essa declaração de acolhimento das pessoas LGBTT articula-se com um dos discursos do papa, quando tomou a iniciativa de afirmar a propriedade da laicidade estatal, explicitando o relevante sentido que vê na separação entre o Estado e as religiões.

É certo que Francisco o fez em favor da pluralidade religiosa, omitindo-se quanto a ateus, agnósticos e aos sem religião. Mesmo assim, foi bem distinto, ou mesmo o oposto, de Ratzinger, que em visita ao Brasil como Bento XVI lutou desde os preparativos da viagem de 2007 para que fosse assinada uma concordata, o que não ocorreu pela pressão popular sobre o então presidente Lula, mas que terminou por ser firmada no Vaticano, em fins de 2008 e aprovada pelo Congresso Nacional em fins de 2009, maculando a República. Vale lembrar que o papa Francisco não aceitou que sua presença no Brasil fosse considerada, do ponto de vista diplomático, como visita oficial de Estado, demarcando a viagem simples e adequadamente como missão religiosa.

Cabe registrar dois aspectos entre os muitos que poderiam ser analisados nessas relevantes manifestações. O primeiro é se o papa terá disposição e coragem para (des)tratar as decorrências malignas e imbróglios da concordata, atualmente no STF, a partir de ADI apresentada pela Procuradoria-Geral da República com foco no tema do ensino religioso em escolas públicas.

Na esfera privada, recentemente o STJ u como “sentença estrangeira” uma anulação de casamento pronunciada pelo tribunal eclesiástico da Santa Sé, tendo como base o decreto advindo da aprovação da concordata no Congresso Nacional; o detalhe é que há filhos desse casamento anulado e o pai, que nem de ex-marido pode ser chamado, deu declarações afirmando que o próximo passo que pretende é retirar o nome da mãe da certidão das crianças. O direito de família no Brasil dispensa esse tipo de ingerência, soando absurdo o Estado brasileiro abdicar de seus cidadãos e suas cidadãs para que seus destinos sejam decididos fora de nossos tribunais, ainda mais quando se trata de crianças. Diante disso, o que poderá dizer o Conselho Tutelar?

O outro caso é a justa indignação do conhecido (ex)padre Beto, que se viu perdendo o sacerdócio e excomungado por suas posições de aceitação dos gays e, agora, frente às declarações do papa, decidiu entrar na Justiça brasileira para questionar as penalidades que lhe foram impostas pela diocese à qual respondia. Seu advogado procura ganhar, junto ao Poder Judiciário do Estado brasileiro, o direito de defesa – mas seria essa defesa junto ao tribunal eclesiástico? Como pode o Estado pronunciar-se sobre excomunhão? Mas se há uma concordata que faz o STJ admitir a sentença de anulação de casamento, não permitiria também essa outra ação? Se a Igreja Católica considera adequado que a Justiça brasileira e a sentença eclesiástica, ficará também confortável com essa interpretação, que faz do acordo entre o Brasil e a Santa Sé, o advogado do ex-religioso excomungado como fiel e como padre?

Assim, os malefícios da assinatura da concordata, já antes visíveis, por exemplo, nos processos eleitorais em que grupos religiosos aprenderam o poder da pressão (ou da chantagem?) sobre candidatos, em especial a cargos majoritários, nesses casos personalizados indicam o conflito de esferas que esse acordo inconstitucional pode e já tem gerado. Mais ainda, é importante pensar na educação de crianças e adolescentes, seja pelo que podem sofrer hoje nas escolas, elas mesmas resultado e fonte de processos de discriminação social, seja pela possibilidade de que venham a viver de modo tranquilo, sem sobressaltos, sem discriminações que acabam por matar, seja em ataques físicos que expressam a homofobia, seja em processos simbólicos que, insidiosos, conduzem a mau destino. Pesquisas realizadas em escolas, em diferentes partes do Brasil, têm indicado as pressões que sofrem adolescentes que se identificam com a homossexualidade. São casos em que a aplicação imprópria e inconstitucional do ensino religioso nas escolas públicas confunde-se com má orientação em termos de saúde e educação sexual, sem contar o modo impróprio como se utilizam palavras que ferem, supondo que nada podem causar e, que se supõe, seria expressão de uma verdade incontestável.

O alcance da fala de Francisco apenas começa a se manifestar, tendo um papel educativo tanto para os fiéis católicos que tomam o papa como sua autoridade maior, como para os setores sociais que, repercutindo a presença papal no Brasil, talvez tenham se surpreendido com sua sinceridade.

Com suas palavras, o papa demonstrou que a mensagem religiosa tanto pode alimentar o discurso do acolhimento, combatendo estereótipos e estigmatização, quanto o discurso de ódio, como tem se visto em algumas lideranças religiosas e parlamentares que parecem esquecer ou desconhecer o papel público de que estão investidos.

*Roseli Fischmann é coordenadora do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo e professora da pós-graduação da USP

Acesse o PDF: Não julgarás, por Roseli Fischmann (O Estado de S. Paulo – 04/08/2013)    

 

 

 

 

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