(IG) Cobertura independente deve fazer grande imprensa buscar o ‘jornalismo com alguém’ em vez de ‘para alguém’.
As manifestações que aconteceram do Cairo a São Paulo passando por Nova York e Moscou nos últimos anos desataram não somente discussões sobre o modelo econômico e de representação política das sociedades atuais, mas também debates relacionados à cobertura jornalística dos eventos que se multiplicaram nas ruas.
Munidos com smartphones e câmeras conectadas à internet, testemunhas, manifestantes e os chamados coletivos desempenharam um papel de protagonistas ao adotar uma forma alternativa de coletar e disseminar informações com forte uso das redes sociais, servindo como um paralelo – e em alguns momentos, contraponto – às notícias veiculadas na grande imprensa.
Transmissões ao vivo, sem cortes e sem edição de protestos deram a tônica da difusão de informações durante os movimentos 15-M da Espanha (conhecidos como indignados), do Occupy nos EUA, das revoltas na Primavera Árabe , das manifestações contra Vladimir Putin na Rússia e, mais recentemente, dos protestos na Praça Taksim , na Turquia. No Brasil, o destaque ficou para o coletivo Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), que atraiu cerca de 100 mil espectadores ao transmitir os confrontos entre a Polícia Militar e os manifestantes na noite de 18 de junho em São Paulo .
Com o alcance ampliado por causa do desenvolvimento tecnológico, esse modelo direto e colaborativo de se comunicar, apesar de não retirar a importância do jornalismo tradicional, evidencia uma necessidade de mudança do modelo, afirmaram especialistas em mídias ouvidos pelo iG .
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“Quando surge uma nova tecnologia, a mídia tradicional é confrontada, e os esquemas de apuração e transmissão mudam. Com a internet, o jornalismo em geral entra em crise, mas vai se adaptando. Não acho que devemos pensar em termos de substituições de modelos, mas em uma nova ecologia midiática, no qual processos centralizadores e participativos convivem”, afirmou ao iG André Lemos, professor Associado da Faculdade de Comunicação da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Mais do que conviver, Courtney Radsch, especialista em mídia no Oriente Médio, afirma que o chamado jornalismo cidadão, no qual a audiência não é parte passiva, mas ativa do processo de fazer notícia, relaciona-se com a mídia tradicional de forma simbiótica. Segundo ela, grande parte dos praticantes dessa modalidade jornalística deseja que suas questões e perspectivas ganhem atenção na corrente dominante da imprensa, que continua a ter maior impacto na opinião pública.
“A mídia tradicional tem de se adaptar e está se adaptando. A americana CNN, britânica BBC e a Al-Jazeera (do Catar), por exemplo, incluem jornalismo cidadão de alguma forma. Repórteres usam blogueiros, seguidores no Twitter como fontes para matérias, para checagem”, acrescentou.
Velocidade da informação
Entusiastas do jornalismo cidadão sustentam que, com um celular na mão e uma conexão à internet, qualquer um é capaz de relatar a realidade ao seu redor. Mas a prerrogativa de reportar flagras não é exclusiva do jornalista há anos, desde antes mesmo do advento da web. Como Lemos recorda, o empresário Abraham Zapruder, em 1963, foi responsável por filmar a morte do presidente americano John F. Kennedy utilizando uma câmera super 8 caseira. O motorista George Holiday gravou com videocassete o espancamento do taxista negro Rodney King, em Los Angeles, produzindo imagens que rodaram o mundo e provocaram protestos nos EUA nos anos 90.
A internet, com sua facilidade de transmissão ao vivo por redes sem fio, amplia essa capacidade e multiplica seus autores. Para Adriana Garcia, fellow da Universidade de Stanford e cofundadora da Orbitalab, organização que busca fomentar empreendedorismo entre jornalistas, essa pluralidade de espaços pelos quais a informação é produzida e circula deverá provocar nos grandes meios uma mudança de relacionamento entre produtor e receptor.
“Não se vai mais fazer jornalismo para alguém, mas com alguém”, afirmou. “Ao mesmo tempo, o papel da mídia tradicional é muito importante, não só para organizar essas informações que vêm em avalanche das plataformas de redes sociais, como também como um grande checador de informações, capazes de separar o joio do trigo.”
Espaço para os ninjas
Apesar de não excluir a importância da imprensa tradicional, especialistas apontaram problemas na leitura que o empresariado dos grandes conglomerados de mídia faz desse momento de mudança. Silvio Mieli, professor da faculdade de Comunicação e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), aponta que principalmente o jornalismo impresso ficou arraigado às velhas formas e passou a abdicar do exercício de se aprofundar minimamente diante de uma realidade que se apresenta de maneira cada vez mais complexa. “Jornais e revistas, com poucas exceções, viraram espécies de catálogos de lojas de departamentos, deixando de dar significado e sentido ao que acontece.”
Além disso, Adriana Garcia acrescenta que a imprensa tradicional reduziu seu compromisso de atender bem a comunidade na qual está inserida, perdendo o contato com as ruas. Isso talvez explique o sucesso que teve a Mídia Ninja no Brasil em usar uma tecnologia que estava disponível, atendendo à demanda da população ao ocupar um espaço deixado por parte da imprensa tradicional.
“Toda vez que tinha protesto, a gente ia. Estávamos sempre transmitindo e tirando fotos, mas acho que ninguém estava percebendo. Tanto que nossa audiência era baixa. Aí, chegou aquele mês, junho, quando os protestos foram pauta única. Como éramos especialistas em cobrir protestos, a gente apareceu”, relatou ao iG Bruno Torturra, um dos idealizadores da Mídia Ninja.
Torturra contou que começou a fazer transmissões ao vivo de eventos durante a Marcha da Liberdade em 2011, resposta de dezenas de organizações à repressão policial lançada na semana anterior contra a Marcha da Maconha. A partir daí, teve início a PosTV, canal alternativo online ancorado no coletivo Fora do Eixo (FdE), que, dois anos depois, daria origem à Mídia Ninja. Com o sucesso dos protestos, o grupo pretende lançar um site oficial, que reunirá conteúdo de editorias descentralizadas e autônomas.
“( A Mídia Ninja ) parte do jornalismo cidadão, mas acho que a tentativa de construir uma rede, aprofundar pautas fora da rua, se colocar como veículo, leva isso para um outro passo. Mas o jornalismo cidadão é indissociável da Mídia Ninja. Até porque nossa principal mensagem para o público por enquanto é assim: ‘Você também pode'”, explicou Torturra.
Ainda que seja recente para analisar o impacto que a cobertura dos protestos feita pela Mídia Ninja teve na imprensa tradicional, o professor Mieli destaca a inspiração que eles podem acabar exercendo para que cada vez mais cidadãos assumam a prerrogativa de narrar sua própria realidade, podendo acarretar, até mesmo, a eliminação dos próprios ninjas como intermediários no futuro.
Torturra afirmou que, para a Mídia Ninja, o ideal é que mais pessoas passem a criar suas próprias narrativas fazendo suas transmissões, mas não acredita que o veículo se tornará desnecessário. “Mesmo que comece a ter muitos streamings, a gente se coloca como veículo que tem uma rede grande, então atrai muita audiência. Estamos treinando âncoras, construindo o site para fazer reportagens, textos. Acho que a Mídia Ninja vai se ampliar, ou talvez ela se torne desnecessária, mas tudo bem. A gente não é uma empresa mesmo, a gente nunca vai falir.”
Para o novo site manter a independência que defende o grupo, a Mídia Ninja planeja criar sistemas diversos de financiamento direto do público, como doações, assinaturas mensais de baixo valor e doações específicas para reportagens especiais e editorias. Outra ideia é estabelecer uma “microdoação” para cada texto e foto individualmente, para que, ao final do mês chegue uma conta para o leitor, que pagará se quiser e quanto quiser. “O público tem de entender que, para ser independente de fato, ele tem de bancar também.”
Acesse o PDF: Presente em protestos, jornalismo cidadão força adaptação da mídia tradicional (IG, 16/08/2013)