(Ipea) Editada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR), a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR) e a ONU Mulheres, a publicação tem como organizadoras as pesquisadoras Mariana Mazzini Marcondes, Luana Pinheiro, Cristina Queiroz, Ana Carolina Querino e Danielle Valverde.
TRANSFORMAÇÕES NO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO: ALGUMAS IMPLICAÇÕES PARA OS DIFERENTES GRUPOS DE COR E SEXO, por Edilza Correia Sotero
ARTICULANDO GÊNERO E RAÇA: A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NO MERCADO DE TRABALHO (1995-2009), por Márcia Lima, Flavia Rios, Danilo França
A CONCRETIZAÇÃO DAS DESIGUALDADES: DISPARIDADES DE RAÇA E GÊNERO NO ACESSO A BENS E NA EXCLUSÃO DIGITAL, por Layla Daniele Pedreira de Carvalho
MULHERES NEGRAS, POBREZA E DESIGUALDADE DE RENDA, por Tatiana Dias Silva
A VITIMIZAÇÃO DE MULHERES POR AGRESSÃO FÍSICA, SEGUNDO RAÇA/COR NO BRASIL, por Jackeline Aparecida Ferreira Romio
INTRODUÇÃO
Conhecer a realidade para poder alterá-la. Foi a partir desta perspectiva, que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o então Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), hoje ONU Mulheres, começaram, em 2004, a investir na produção e disponibilização de um amplo conjunto de informações sobre as desigualdades de gênero e raça existentes na sociedade brasileira. Naquele momento, a ideia era colocar à disposição da sociedade – movimentos sociais, gestores públicos e acadêmicos – indicadores que permitissem construir um retrato fiel das condições de vida das mulheres e dos negros na sociedade brasileira, partindo-se do pressuposto de que estas categorias se interseccionam e produzem, de forma simultânea, condições específicas de exclusão e discriminação para grupos também específicos. Assim, havia o entendimento de que mulheres negras vivenciariam, de forma diferenciada, sua inserção na sociedade, quando comparadas a mulheres brancas ou a homens negros, por exemplo. Considerou-se, também, que a estas categorias somavam-se outras, como as de classe social, territorialidade ou geração contribuindo para a conformação de um quadro de desigualdades muito particular da sociedade brasileira.
Dessa iniciativa nasceu a publicação Retrato das desigualdades de gênero e raça, cuja última edição foi lançada em 2011, contendo informações a respeito de doze áreas setoriais (entre as quais, educação, saúde, trabalho, pobreza e violência), que cobrem um período de quinze anos, indo de 1995 até 2009 (Ipea, 2011). Todos os indicadores são produzidos tendo por base as Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs), realizadas anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados são, portanto, representativos da realidade nacional e contam com periodicidade anual assegurada, a não ser em anos de realização do censo demográfico, quando a PNAD não vai a campo.
Desde 2011, a produção dos indicadores a partir dos microdados da PNAD tem sido feita pelo Núcleo de Informações Sociais (NINSOC), da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea.
Ao longo destes anos de existência, novos parceiros foram se somando ao projeto e, hoje, o Retrato das desigualdades de gênero e raça é resultado de um esforço interinstitucional, que envolve Ipea, ONU Mulheres e as secretarias de Políticas para as Mulheres (SPM) e de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), ambas da Presidência da República. Todos os indicadores apresentados são sempre disponibilizados para permitir análises simultâneas das categorias raça e sexo e, quando possível, também das categorias de região geográfica, localização do domicílio (urbano/rural), classe social e faixas etárias. No início de 2013, o Retrato passou a contar com um site próprio, possibilitando a atualização mais imediata de suas informações, bem como a maior divulgação e acesso aos dados produzidos. A cada nova PNAD disponibilizada pelo IBGE, o Retrato será atualizado diretamente no site, oferecendo à sociedade informações mais detalhadas e completas acerca das desigualdades de gênero e raça que ainda marcam o país.
Cabe, porém, às instituições promotoras do Retrato das desigualdades de gênero e raça mais que disponibilizar novos indicadores ao grande público. É preciso também fomentar reflexões a partir destas informações e contribuir para o aprimoramento da intervenção governamental no enfrentamento às desigualdades e discriminações fundadas em gênero e raça. Neste sentido, têm sido produzidas, a partir dos dados do Retrato, algumas publicações que trazem textos autorais, os quais abordam importantes questões para a área (Dossiê…, 2009; Ipea et al., 2011). A mais recente destas publicações é este Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Tal projeto é fruto da última atualização do Retrato das desigualdades, lançada em 2011, e objetiva analisar os contextos de inserção e participação das mulheres negras na sociedade brasileira ao longo dos últimos anos. Para a elaboração deste livro, foram convidadas jovens mulheres negras, com alguma inserção no campo da academia ou das organizações governamentais e que já houvessem produzido reflexões acerca da temática.
Esta escolha foi percebida pelas instituições organizadoras como uma forma de dar voz e espaço a novas reflexões que estejam surgindo no contexto nacional, valorizando a produção e o conhecimento deste grupo específico de mulheres.
Nesse sentido, este dossiê traz relevantes questões sobre as condições de vida das mulheres negras brasileiras, desenvolvidas a partir de cinco grandes referenciais: a situação educacional, a inserção no mercado de trabalho, o acesso a bens duráveis e às tecnologias digitais, a condição de pobreza e a vivência de situações de violência. Cada autora desenvolveu um conjunto de importantes reflexões, elaboradas a partir dos dados disponibilizados pelo Retrato e das suas experiências enquanto mulheres, negras, jovens e pesquisadoras, que vivem em uma sociedade ainda fortemente marcada pelos preconceitos e desigualdades.
O primeiro texto, de autoria de Edilza Correia Sotero, trata do acesso diferenciado ao sistema educacional, especialmente ao ensino superior, ao longo do período de 1995 a 2009. A autora desenvolve suas reflexões tendo como referência o pensamento feminista negro, referenciado em teóricas como Judith Grant e Patricia Collins, que posiciona as mulheres negras no centro, “não só em termos de produção, mas de análise, ao privilegiar o lugar que a mulher negra ocupa na estrutura social”. São considerados dados oriundos das PNADs, bem como indicadores que, coletados pelo próprio Ministério da Educação (MEC), permitem a construção de um quadro mais amplo e completo sobre as desigualdades de gênero e raça, em particular, no acesso ao ensino superior. A autora aponta para uma ampliação da presença de mulheres negras neste nível de ensino, fortemente influenciada por estratégias de ação afirmativa implementadas ao longo dos últimos anos, mas destaca a necessidade de que este movimento seja analisado de forma crítica, considerando-se a noção de hierarquização, ou seja, das diferenciações valorativas entre cursos e entre instituições de ensino superior e a distribuição das mulheres negras e brancas segundo estes cursos e instituições.
Na sequência, Márcia Lima, Flavia Rios e Danilo França abordam a questão das desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho brasileiro. Os(as) autores(as) partem de uma análise que considera as desigualdades no mundo educacional a fim de se aproximar do modelo de desvantagens cumulativas – tal como proposto pelos sociólogos Carlos Hasenbalg e Nelson do Vale Silva – e compreender, de maneira mais acurada, os cenários de amplas desigualdades no espaço do trabalho. Foram analisados não apenas indicadores relacionados ao acesso ao mercado, mas, especialmente, à segmentação ocupacional, fundada em valores relacionados a gênero e raça, e as diferenças de rendimento resultantes de todo o processo de inserção e discriminação no mundo do trabalho. Ainda que apontem para tendências de redução das desigualdades entre mulheres brancas, mulheres negras, homens brancos e homens negros, os(as) autores(as) ressaltam que os “caracteres adscritos” de raça e gênero seguem sendo determinantes, tanto da forma de inserção no mercado, quanto dos retornos, em termos de salários.
Concluem, ainda, que a herança socioeconômica e os padrões culturais e valorativos – que constroem estereótipos limitadores da inserção e ação de determinados grupos sociais – “continuam a operar nos processos de estratificação nos quais negros e mulheres são alocados em posições subalternas”. O terceiro texto, de Layla Daniele Pedreira de Carvalho, traz uma interessante discussão acerca do acesso a um conjunto específico de bens, relacionados especialmente às atividades de cuidado e reprodução social, bem como aos bens e serviços de tecnologia que possibilitam a inserção ou a exclusão digital. Para tanto, foram utilizados indicadores que permitem discutir condições de acesso para os domicílios – e não para os indivíduos isoladamente – a partir das características de raça, sexo e regionalidade de seus/suas chefes. A autora desenvolve suas análises, tendo como pano de fundo as ideias de interseccionalidade e justiça bidimensional, propostas, respectivamente, por Kimberlé Crenshaw e Nancy Fraser. As conclusões apontam para uma melhora no acesso aos bens e serviços considerados, mas a uma forte e, de certa forma, estável desigualdade neste acesso, refletindo o “papel subordinado de mulheres negras e brancas e de homens negros na organização da sociedade nacional”.
Em seu texto, para estudar os temas de pobreza e desigualdade de renda, Tatiana Dias Silva parte de um arcabouço teórico-metodológico que se fundamenta nos conceitos de interseccionalidade, tal como apresentado pela teórica Kimberlé Crenshaw, e de coextensividade, construído pela feminista francesa Danièle Kergoat, como uma tentativa de aprimorar e ampliar o escopo do conceito proposto por Crenshaw. A partir destas reflexões, que procuram explicitar os “processos de subordinação e compreendê-los como ‘pano de fundo’ para as desigualdades, [aproximando-se] do real e de suas complexidades”, a autora destaca a condição estrutural das desigualdades de gênero e raça para a conformação de um quadro de desigualdade de renda mais amplo na sociedade brasileira, assim como de vivências diferenciadas de situações de pobreza, conforme o grupo social do qual se faça parte. Tendo por base um amplo conjunto de indicadores que permitem o delineamento de um quadro persistente de desigualdades, Tatiana Silva defende a adoção de ações afirmativas para a reversão deste cenário e a reconfiguração de estratégias pretensamente neutras de intervenção pública em relação aos aspectos de gênero e raça.
Finalmente, Jackeline Aparecida Ferreira Romio apresenta uma inovadora discussão desenvolvida a partir dos dados do suplemento PNAD sobre vitimização e acesso à Justiça. Estes dados, que apenas haviam sido coletados em finais da década de 1980, foram novamente levantados em 2009, pelo IBGE, possibilitando a produção de reflexões como as apresentadas pela autora acerca da violência sofrida por mulheres negras na sociedade brasileira. Partindo das teorias desenvolvidas pelos feminismos negros, que buscam nas ideias de intersecção e de “leitura múltipla dos riscos para a exposição à vitimização” as bases para suas análises, Jackeline Romio procura evidenciar as especificidades da vitimização de mulheres negras por um fenômeno tradicionalmente percebido como universal e “democrático”, como é o caso da violência doméstica ou familiar contra as mulheres. Pela análise dos dados, é possível identificar questões importantes, seja no que se refere à incidência do fenômeno e suas características, seja na busca de soluções e suporte do Estado para o seu enfrentamento.
Acesse a publicação em pdf (4,4 MB): Dossiê Mulheres Negras retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (Brasília, 2013)