26/01/2014 – Violência, guerras e gênero: 70% das mulheres sofrem alguma agressão durante a vida

26 de janeiro, 2014

(El País) A violência sexual contra as mulheres é onipresente e constitui um dos capítulos mais vergonhosos, e mais silenciados, da história dos conflitos bélicos. Isso apesar das evidências de que essa violência não só foi consentida como também estimulada como arma de guerra

Uma das notícias mais alvissareiras de 2014 é a abertura de negociações com o regime iraniano em torno do seu programa nuclear. Com razão, a comunidade internacional se preocupa com a proliferação dessas armas, daí que, de forma excepcional, no outro lado da mesa encontremos EUA, Rússia, China e a União Europeia atuando unidos. Mas, apesar da incrível capacidade de destruição dessas armas, há quem sustente que elas não têm tanto de excepcional; são, dizem, nada mais que muitas toneladas de explosivos juntas. Não lhes falta um pouco de razão: o genocídio mais importante da história, cometido contra o povo judeu, não exigiu armas nucleares, como tampouco foram necessários mais do que algumas dezenas de milhares de facões de fabricação chinesa para liquidar os 800.000 tutsis que faleceram no genocídio ruandês. As aproximadamente 135.000 vítimas de Hiroshima desafiam nossa compreensão, mas o mesmo vale também para os quase 300.000 mortos na batalha de Verdun. A crua realidade é que, desde a noite dos tempos, o ser humano mostrou uma incrível capacidade de matar, de fazê-lo em massa e sustentadamente, e para isso se valeu de qualquer coisa ao seu alcance: um facão, uma AK-47, explosivos convencionais ou bombas atômicas.

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Um momento: “o ser humano”? Não exatamente. Na prática, a totalidade de todas essas mortes tem em comum um fato tão relevante como invisível no debate público: que foram homens que os cometeram. A história militar não deixa lugar a nenhuma dúvida: os Exércitos sempre foram formados por homens, os quais foram os executores quase exclusivos desse tipo de violência, e suas principais vítimas. É verdade que guerrilhas e grupos terroristas historicamente incluíram mulheres, às vezes muito sanguinárias (na Espanha, por desgraça, conhecemos o fenômeno), mas a violência bélica nas mãos das mulheres foi uma gota em um oceano. O resultado, apesar de conhecido, não é por isso menos trágico: só no século XX, as vítimas desses conflitos desencadeados e executados por homens custaram a vida de entre 136 e 148 milhões de pessoas.

Dir-se-á que as guerras são coisas do passado, típicas de sociedades pré-democráticas. Mas como explicar então o viés de gênero que domina a violência em nossas sociedades? Não falamos de sociedades atávicas, mas sim de sociedades ocidentais, democracias plenas onde, como nos Estados Unidos, as estatísticas nos indicam que 90% de todos os homicídios cometidos entre 1980 e 2005 foram de autoria masculina, ao passo que apenas 10% tiveram mulheres como responsáveis. De todos esses homicídios, um pouco mais de dois terços (68%) foram cometidos por homens contra homens, enquanto em um quinto deles (21%) um homem matou uma mulher. Embora haja, de fato, mulheres que matam homens, esses crimes representaram apenas 10% de todos os homicídios, ao passo que, significativamente, o percentual de mulheres que mataram outras mulheres foi ridículo (2,2%). Assim, portanto, as mulheres não matam mulheres, só homens, e em grande parte em legítima defesa. Claro que os EUA são uma sociedade mais violenta do que outras, mas os dados da Espanha, Reino Unido ou outros países de nosso entorno não são muito diferentes: reveladoramente, a população penitenciária espanhola está composta em 90% por homens e em 10% por mulheres. Assim como na guerra, o homicídio e, em geral, o crime parecem ser fenômenos quase puramente masculinos.

Os efeitos de uma cultura patriarcal dominada por homens são tão demolidores que dá a impressão de que se trava no mundo uma guerra (invisível, porém guerra) de homens contra mulheres. Segundo as Nações Unidas, 70% das mulheres experimentaram alguma forma de violência ao longo de sua vida, sendo uma em cada cinco do tipo sexual. Incrivelmente, as mulheres entre 15 e 44 anos têm mais probabilidade de serem atacadas por seu cônjuge ou violentadas sexualmente do que de sofrerem de câncer ou se envolverem em um acidente de trânsito. Na Espanha e em outros países europeus, quase metade das mulheres vítimas de homicídios tiveram seus cônjuges como algozes, frente a 7% de homens, o que significa que a probabilidade de uma mulher morrer nas mãos do parceiro é seis vezes superior à de um homem com relação à parceira.

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A violência sexual contra as mulheres é onipresente e constitui um dos capítulos mais vergonhosos, e mais silenciados, da história dos conflitos bélicos. Isso apesar das evidências de que essa violência não só foi consentida como também estimulada como arma de guerra. Segundo Keith Lowe, autor do livro Continente Selvagem, a Segunda Guerra Mundial bateu todos os recordes de violência sexual, especialmente contra as mulheres alemãs, à medida que o Exército soviético entrava na Alemanha (calcula-se que 2 milhões delas foram estupradas como consequência de uma política de vingança sexual deliberada). Hoje em dia, a ONU estima em 200.000 os estupros ocorridos na República Democrática do Congo, uma cifra similar à oferecida para Ruanda. Longe da África, no coração da Europa educada, o estupro também foi uma arma de guerra interétnica no conflito da antiga Iugoslávia, onde se estima que entre 20.000 e 50.000 mulheres tenham sido sexualmente violentadas. A isso se soma uma longa lista de crimes que só as diferenças de gênero podem explicar, os quais incluem o aborto seletivo de meninas, os crimes de honra, o tráfico de mulheres com fins de exploração sexual e a mutilação sexual, que afeta 130 milhões de mulheres. Nem é preciso entrar nas sutilezas da discriminação política, econômica e social, um fato em si muito revelador da subordinação generalizada da mulher: o nível de violência física contra as mulheres no mundo já diz tudo. Alguns descrevem a violência exercida contra as mulheres em decorrência apenas no seu gênero como “feminofobia”. Por que esse termo não nos soa familiar, nem qualquer outro semelhante?

Reconheçamos: os homens são a maior arma de destruição em massa que a história da humanidade já viu, e há 3,5 bilhões deles à solta por aí. Podemos proibir as armas grandes, as armas pequenas, as minas terrestres, as bombas de fósforo ou de fragmentação, as armas bacteriológicas, químicas e nucleares, mas no final estaremos sempre no mesmo lugar: por trás de cada arma haverá um homem. Por isso as Nações Unidas adotaram várias iniciativas de alcance mundial, recorrendo para tanto ao próprio Conselho de Segurança, que, em sua Resolução 1.325 de 31 de outubro de 2000, tornou visível pela primeira vez a necessidade de uma proteção explícita e diferenciada às mulheres e meninas em cenários de conflito, assim como a contribuição fundamental que as mulheres fazem e devem fazer no que tange à resolução de conflitos e a construção da paz.

Existem muitas explicações possíveis, e complexas, sobre esses fatos. Tampouco são fáceis as respostas que devemos dar, e muito menos as medidas a adotar. Mas os fatos estão aí, e são incontestáveis: os homens matam e se matam, muito, e exercem muita violência contra as mulheres. Entretanto, o debate público sobre esse fato é inexistente. Antes que repostas, esse debate exige perguntas, na verdade uma só pergunta: seriam os homens uma arma de destruição em massa?

*José Ignacio Torreblanca é professor de Ciência Política na Universidade Nacional de Educação a Distância. Dirige o escritório em Madri do Conselho Europeu de Relações Exteriores e é autor de diversos livros.

Acesse o PDF: O macho, arma de destruição em massa (El País, 26/01/2014)

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