(Fantástico) Nossa equipe viajou pelo país pra fazer um retrato de brasileiros movidos à felicidade.
O que há de bom em viver em uma favela? “Eu prefiro ser rico entre os pobres do que pobre entre os ricos”, diz o agente comunitário José Fernandes Junior.
E se chovesse dinheiro? “Não saio não. Vou pra onde? Um milhão eu trabalho e consigo”, diz Adriano Castro.
Por que nem a juventude quer sair? “Eu falo para os meus amigos que Paraisópolis está parecendo já Las Vegas. É sério. Você vem aqui, pode vir 3 horas da madrugada e vai ver um monte de gente na rua. Aqui não dorme”, explica o motoboy José Lopes da Silva.
Não dorme, não para e não aceita mais ser rotulada. “Ah, mora na favela aquela pessoa pobre. Não. Eu não me sinto assim”, afirma Diego da Lima Silva, de 22 anos.
Diego e Júnior moram em Paraisópolis, São Paulo. Fernandes e Adriano, na Rocinha, no Rio de Janeiro. Mas poderia ser o Buraco Quente, no morro Santa Teresa, em Porto Alegre, onde mora Francisco.
“Tudo o que eu tenho, tudo o que eu consegui aqui nesse morro eu agradeço ao Buraco Quente”, explica o comerciante Francisco Carlos Ferreira.
Ou o Alto Zé do Pinho, em Casa Amarela, no Recife, onde vivem Keyla e Marcone. “Nunca tive uma bicicleta na minha vida. Vim ter uma bicicleta com mais de 20 anos. E fui eu mesmo que comprei. Com minha filha, vai ser totalmente diferente. Já é. Então já estou feliz com isso”, conta o músico Marcone Santos.
Tanto é diferente que os 11 milhões de moradores das favelas do Brasil não se veem mais como antigamente.
Vamos considerar um divisão de classes dessa maneira: classe alta, classe média alta, classe média, classe média baixa e classe baixa.
A maioria dos moradores questionados respondeu que se considera classe média.
Foi o que detectou o instituto DataPopular em uma pesquisa que ouviu 2 mil pessoas em 63 favelas do Brasil: 65% dos favelados se dizem de classe média, o que comprova os sinais de prosperidade de um mercado consumidor que movimenta R$ 63 bilhões por ano.
“Na felicidade em conseguir comprar minhas coisas eu sou alta. Aí eu sou baixo no quê? Quando eu vou pagar. Aí vem no cartão e a gente se aperreia para pagar!”, brinca Marcone.
Marcone, conhecido no Alto Zé do Pinho como Canibal, é músico e depende da renda incerta de seus shows. Mas a mulher, Keila, trabalha como secretária executiva e, à noite, faz bolos sob encomenda.
Fantástico: Você ganha mais como secretária ou fazendo bolo?
Keila: Com os dois. Já teve mês de igualar os dois.
O que reforça outro dado da pesquisa: em 38% dos casos, o sustento da família vêm das mulheres.
“A mulher é a parte mais racional do casal. Então, diferente do que o senso comum pensa, de que a mulher só quer gastar, na favela não é assim que acontece. A mulher faz mais as contas até por ter uma escolaridade maior do que os homens. Ela consegue botar um freio quando o marido quer dar um passo maior que a perna”, afirma Renato Meirelles do Instituto DataPopular.
É o que acontece com Adriano e Luísa. O casal têm dois restaurantes na rocinha para atender a uma clientela generosa.
“Ele quer comer bem, quer beber, quer se vestir bem, quer gastar mesmo, afirma Luísa Paiva.
Adriano quer turbinar o cardápio com o que há de bom e melhor. Mas é Luísa quem tem a chave do cofre.
O casal vive em um beco da Rocinha. Por fora nem parece, mas o pão durismo de Luísa rendeu a eles uma casa bem equipada. “A casa é dividida em dois andares, dois cômodos, onde dormem eu, meu marido e meu bebê. E embaixo é outro cômodo, onde fica minha máquina, fogão, geladeira”, explica Luisa.
Casas assim são comuns em favelas do Brasil inteiro. Em Porto Alegre, o problema é o que fica do lado de fora. O cano de água potável não é da companhia de abastecimento. É um gato. Foram os moradores que fizeram. O mesmo acontece com a eletricidade. Tudo é gato. A companhia de energia não chega na comunidade. Mas a penúria e a escassez ficam do portão para fora. Do portão para dentro, a gente consegue ver com clareza o contraste entre a ausência do Estado e a presença forte das pessoas e das famílias.
Tudo tinindo de novo. Em cada cômodo, o mesmo capricho. Mas como manter o que as pessoas compram funcionando direito?
A dona de casa Silvana Damasceno ficou um dia inteiro sem água. “Agora que está vindo. De dia não tem água e de noite não tem luz”, conta. “Agora que deu sinal de vida. Hoje eram duas horas da manhã e não tinha água”, completa.
Com a energia é pior. Silvana usa o ventilador como medidor de eletricidade.
Fantástico: Quer dizer que se o ventilador está rodando forte, a senhora corre para ligar a máquina de lavar?
Silvana: Isso!
Fantástico: Que é sinal que a energia está boa?
Silvana: Está boa.
Fantástico: E se ele tiver fraquinho a senhora deixa a roupa acumular?
Silvana: Aí nem pensar.
O pessoal vai levando. Diversão de moleque, claro, é mandar a bola na gaveta. Campinho de chão batido, com o estádio da copa ao fundo, normal, paisagem de favela. Mas quem imaginaria um barraco com piscina no alto do morro?
“Foi uma briga pra trazer por cima das casas a piscina. Mas tá aí”, diz a dona de casa Elisete dos Santos.
Fantástico: Para molecada se divertir não precisa nem sair daqui da comunidade então?
Elisete: Claro que não. Tanto que tem os vizinhos que vão para a praia e nós não vamos, né?
A pesquisa do DataPopular mostra justamente que as pessoas estão saindo cada vez menos das favelas para se divertir.
“Pensa bem: eu estou perto de casa, não vou gastar muito dinheiro, estou mais seguro aqui do que fora. Então para que sair para fora?”, questiona Diego.
Diego se reúne com os amigos em um esquenta com dança e videogame. Depois, lá pela meia-noite, vai para a rua, em Paraisópolis, onde tudo acontece.
De acordo com a pesquisa, a maior diversão de um morador de favela é ir a uma festa dentro da comunidade: 45% deles fazem isso todo mês; e 36% fazem churrasco uma vez por semana dentro da favela.
Quase não se vê ninguém na escuridão das ruas e dos becos da Rocinha, mas é justamente no começo da noite de domingo, que o pessoal começa a se preparar para se divertir. Só que isso acontece dentro das casas.
Churrasquinho na laje é uma instituição. O comerciante João Batista recebe pessoas todo domingo.
Fernandes é um especialista em diversão na favela. “Diversão é encontrar pessoas, é encontrar o outro, é se identificar, é vivenciar coisas bacanas, é criar amizade, é agregar os amigos à tua vida”.
O que interrompe esse encontro, às vezes, é a tensão gerada pela violência, como no tiroteio que houve na Rocinha, na madrugada de domingo (16).
Como dois mundos convivendo lado a lado, no da diversão não se vê sequer uma única briga.
Fernandes organiza um pagode que lota a rua e logo vira funk. “A Rocinha é, e sempre vai ser, uma grande mistura. Sem funk e sem pagode, nenhum evento é bom o suficiente. Não existe um evento na Rocinha, um, que não tenha essa mistureba”, ele explica.
Na favela, o funk começa de chupeta. É febre entre a criançada. Mas, com 16% da preferência, não é o estilo musical mais ouvido na favela. O pagode, com 30%, está em primeiro lugar.
Mesmo no Sul do Brasil, onde festa boa tem samba e carne no fogo. “Aqui a gente tem a tradição do swing, da dança, que é muito difundido no estado do Rio Grande do Sul. O pessoal às vezes desconhece, que gaúcho não sabe sambar, e gaúcho tem a tradição do churrasco aliado ao samba”, diz Diogo Santos da Fonseca.
Mas qualquer que seja a diversão, ela é sempre comunitária. A pesquisa mostra que 70% dos moradores recebem amigos, parentes ou vizinhos todos os meses.
“Acabou seu açúcar, acabou teu café, tu chega na tua varanda e grita para o vizinho: me dá aí, me dá uma xícara disso, me dá uma xícara daquilo. É você, às vezes, interferir no estresse da casa do outro e conseguir apaziguar, isso você não encontra num condomínio. Essa intimidade, esse valor de estar junto, esse carinho com o outro, você só encontra em comunidade”, destaca Fernandes.
Há uma clara percepção de que isso não acontece quando se desce o morro.
E isso faz com que pouca gente queira ir embora da favela. “A pesquisa mostrou que mais de dois terços dos moradores da favela não sairiam da favela nem que o seu salário dobrasse. Isso significa que, na prática, essa vida comunitária está presente no dia a dia dos mais de 11 milhões de favelados do Brasil”, explica Renato Meirelles.
“A maioria das pessoas que saíram da vila, a maioria, isso eu digo nesses 35 anos que eu estou aqui, foram os que voltaram. Se fosse tão ruim, por que voltaram?”, questiona Francisco.
E 94% dos moradores das favelas brasileiras afirmam categoricamente que são felizes.
“Estar feliz consigo mesmo é você chegar num patamar muito grande como pessoa”, garante Marcone Santos.
“A simplicidade te torna feliz”, afirma Fernandes.
“A felicidade está na gente. Está na gente, está na família. É por isso que eu acho que gente pobre, se saber viver, acho que é mais feliz até em certos lugares”, finaliza Francisco.
Acesse o PDF: Pesquisa mostra que 94% dos moradores de favela são felizes (Fantástico – 23/02/2014)