Da clandestinidade a honrarias em Brasília, as lutas feministas de Clara Charf, fora da sombra do guerrilheiro Carlos Marighella
(O Estado de S. Paulo) Clareou. Passava das 5h30 da matina dessa quarta-feira de cinzas e de nuvens tristes, ainda na ressaca do carnaval, enquanto as ruas paulistanas eram novamente tomadas por carros, buzinas e guarda-chuvas coloridos. Era o retorno à rotina da gente comum, que entre céu e concreto enfrenta trânsito caótico, trabalho chato, preço abusivo do filé ao café, tudo para voltar para casa e, depois de mais uma jornada, começar tudo de novo. Ainda chuviscando no início da tarde, enquanto caminhava pelas ruas do Bom Retiro, prestes a encontrar Clara Charf pela primeira vez, não imaginava que era justamente assim que a ilustre viúva de Carlos Marighella gostaria de ser retratada aos 88 anos: como gente comum.
Uma mulher comum, aliás. Quer dizer, tudo que ela não é. Clara Charf me recebeu na sua casa, após diversos pedidos de entrevista sobre sua luta feminista. Arisca, ressabiada e um tiquinho rabugenta, no primeiro minuto disparara do outro lado da linha: “Que que é esse tal Aliás?”. Por fim, aceitou e abriu a porta, que trazia um tradicional capacho de “bem-vindos”. De pele alva, olhos castanhos e fios brancos, a senhora vestia camisa vermelha, sua cor preferida, e jaqueta jeans. Se noutros tempos não tinha tempo para vaidades, dessa vez tinha batom rosinha, broche e brinco de flor.
A poucos passos da porta, uma mesa de madeira maciça. À esquerda, um calendário simples, um cartaz da comunista Soledad Barrett Viedma, adiante uma estante de madeira repleta de livros, entre muitos títulos sobre a ditadura e biografias de personalidades como Che e Lamarca.
A mesa, dividida. De um lado, uma toalha xadrez vermelha arrumada por Mazé, com café, bolo de maçã folhado e suco de uva kosher. De outro, orquídea branca, óculos, a biografia Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, de Mário Magalhães, uma revista Tpm e uns exemplares desse tal Aliás. “Vocês, jornalistas… Uma coisa é a profissão, o dever de trabalhar com a verdade, isto é, de publicar histórias que podem ser úteis para a sociedade.
Outra é querer transformar a vida em uma história de outro mundo. Não é assim. Somos todos iguais. Mas, por força das circunstâncias, cada um escolhe seu caminho.” Ainda na mesa, um estojo negro com uma chapinha prata, assinada pela ministra Eleonora Menicucci, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher: “Homenagem a Clara Charf, uma guerreira pela paz, justiça social e liberdade. Brasília, 18 de fevereiro de 2014”. Em poucas palavras, esse foi o caminho escolhido pela militante pernambucana.
Nascida num 17 de julho em Maceió, Clara cresceu no Recife. Filiou-se ao Partido Comunista aos 21. Queria a liberdade dos céus, mas, como não pôde ser aviadora, encontrou asas num vestido azul na Aerovias Brasil. Não tardou para que a aeromoça se tornasse um pombo-correio, num leva e traz de documentos para o Comitê Nacional do PCB. Depois se tornou taquígrafa do Partidão. É desses tempos a famosa história de amor: a “branquinha” cruzou o caminho de outro partidão, o deputado Carlos Marighella, no Rio.
Apaixonaram-se. Gdal Charf, mascate e judeu russo, se desesperou: sua filha metida com um schvartz, roiter e goy! Para impedi-la de fugir com esse preto, comunista e cristão, o pai rasgou seus documentos e suas roupas. Clara se refugiou na casa da deputada Adalgisa Cavalcanti, que lhe costurou um vestido. Clara o vestiu e fugiu à noite com Marighella.
Ficaram juntos de dezembro de 1948 a novembro de 1969, quando o guerrilheiro foi assassinado pela repressão. Nunca casaram no papel, pois na época estavam na clandestinidade. Se na intimidade eles se tratavam por “Lobinho” e “Chapeuzinho”, nas ruas os nomes eram outros. Ao lado de Marighella, Clara, um dia princesa d’A Classe Operária, do PCB, se tornou Nice, Sílvia, Vera, entre outros nomes fictícios. Teve diversos endereços, principalmente no eixo Rio-São Paulo, articulando apoio tático para a Ação Libertadora Nacional, a ALN, enquanto o comandante viajava para ordenar a guerrilha Brasil adentro. A militante comunista ainda se tornou Marta Santos, em São Paulo, e Claudia Gonzáles, em Havana.
Nessas mil faces de uma mulher leal, Clara viveu sob duas ditaduras – a de Getúlio Vargas (1937-1945) e a militar (1964-1985). Na última, foi uma das primeiras mulheres a ter os direitos políticos cassados. Após a morte de Marighella, declarado o inimigo n.º 1 pelos militares, Claudia se exilou em Cuba. Na ilha de Fidel, aprendeu espanhol e virou tradutora. A primeira nova palavra: cepillo. “Dessas discussões sobre médicos cubanos agora… Eles são ótimos. Uma vez, fiquei doente e fui internada. Tinha três camas no quarto: uma mulher de um alto comandante, uma faxineira e eu. Todas iguais. Queria escovar meus dentes e fiquei pedindo uma escova para a enfermeira. Logo descobri que ‘escova’ é vassoura no espanhol, imagina”, ri alto e sorri.
Hoje Clara tem um sorriso fácil, sincero, sonoro. Por muito tempo, não foi assim – “Marighella dizia: Clara, você não pode sorrir nas ruas, senão vão logo te reconhecer”. Em Havana, Claudia tampouco sorria, nem para tirar fotos, por medo de ser descoberta. A militante voltou ao Brasil com a anistia, em 1979. “Anistia te dá sua vida de volta. É a alegria de poder discutir, viajar, sair, encontrar amigos, reencontrar família, recomeçar”, conta, sentando-se numa poltrona da sala, arejada por janelões, diante de um cartaz do documentário Marighella, dirigido por sua sobrinha Isa Grinspum Ferraz.
– Posso fazer um retrato da senhora?, perguntou o fotógrafo Daniel Teixeira.
– Ué, e você trouxe a máquina pra quê?
De volta a São Paulo, Clara virou bibliotecária para ganhar o pão – e voltou a militar nos movimentos sociais querendo lutar para dividir o pão. Filiou-se ao jovem Partido dos Trabalhadores e, em 1982, disputou uma vaga para deputado, defendendo direitos das mulheres – apesar dos 19.500 votos, não foi eleita. Durante a campanha, notou no primeiro comício que sua identidade finalmente se firmara quando um companheiro lhe perguntou: “Você não é a Nice?”. “Não. Sou Clara Charf. De verdade.”
Nos últimos tempos, a pernambucana precisou trocar Perdizes por Bom Retiro. Em 2010, durante a campanha presidencial de Dilma Rousseff, a feminista perdeu o equilíbrio, escorregou e quebrou o fêmur, em Brasília. Lula deu um jeitinho e Clara foi internada no hospital das Forças Armadas – ironia, tratada por militares, que ainda ontem a destratavam. Ao voltar para São Paulo, concordou que seria melhor se mudar para mais perto de sua irmã, Sara. Agora vive num predinho dominado por coreanos no bairro judeu. “Foi uma queda estúpida, mas mudou minha rotina”, diz, enquanto se apoia na bengala para procurar um livro. “Antes, morava sozinha e era absolutamente independente. Era ativíssima. Às vezes me dá uma tristeza, porque quero sair e não posso. E daí? Faço o que posso.”
De fato, faz. Clara não perde uma discussão no Memorial da Resistência, participa de debates nas universidades, às vezes assiste a depoimentos na Comissão da Verdade de São Paulo. Entretanto, não mergulha tão a fundo em questões contemporâneas. Os 50 anos do golpe? “Não sei se 50 anos bastam para acertar o passado. As comissões contribuem para trazer à baila o que realmente aconteceu, mas como vamos julgar isso? Os torturadores serão presos?” A anistia? “O que vai acontecer com os militares? Vão prestar contas à sociedade?” O julgamento do mensalão? “Uma história sórdida. Esse juiz foi… Não era por aí. Isso faz parte da luta ideológica.” As jornadas de junho? “Tinha de tudo nessas manifestações, né?” O Colégio Médici que se tornou Colégio Marighella em Salvador? “A Bahia inteira ficou feliz!” Pretende escrever suas memórias um dia? “Não.”
Clara ri, um lamento quase lhe tira o sorriso, mas logo se vai. “Não sou mais jovem. Se fosse, estaria lá no movimento estudantil. Mas não fico de braços cruzados. Ainda tenho vontade de intervir”, diz, com voz firme, mas doce. “Estou fisicamente impossibilitada para ir às ruas, mas há outras maneiras. Se convidada, subo no palco, de bengala mesmo, para mostrar para os jovens que é possível continuar na luta, depois de não sei quantos anos de militância. Se tá viva e lúcida, a gente precisa contribuir, não é?” É. “Se você vive em uma sociedade em que as pessoas não têm o que comer, você precisa batalhar para que as pessoas tenham o que comer. Se as pessoas não têm condições de estudar e viver, precisa batalhar para que as pessoas tenham um livro para ler e um lugar para morar. Isso é o que está em jogo.”
O jogo é um velho conhecido. Aos 10, Clara se descobriu comunista em Recife, com um empurrãozinho de Jacob Wolfenson, pai do fotógrafo Bob Wolfenson:
– Você é ladrão?
– Não, Clara.
– Mas por que você foi preso?
– Clara, fui preso porque estava lutando. Todo mundo deve ter direito a comida, casa, estudo. E quem não tem? É preciso lutar. Um dia, a gente vai viver numa sociedade em que todos serão iguais. Aí, não vai ter dinheiro, só troca.
– Como assim?
– Eu tenho pão, mas você tem café. Vamos trocar? Aí nós dois teremos tudo. Comunismo é isso. Eu sou comunista.
– Ué, eu também sou comunista!
Olhando para trás, Clara não guarda arrependimentos. “Só de coisas que não fiz, por tempo. Não sei dizer agora quais. Marighella e eu aproveitamos o tempo de liberdade, antes do golpe. Depois, a vida ficou muito difícil.” Queria ter tido filhos? “Disse que eram tempos difíceis”. Quantas casas teve? “Não lembro, muitas. E cada casa tinha uma história. Não fazia amizade com os vizinhos, pois não podia dizer quem era de verdade. Mas fiz muitos amigos na clandestinidade. É interessante. As pessoas pensam que a luta é uma atividade formal e regrada para acabar com a ditadura e tal. Não é isso. A luta é feita de gente. De amizade, diálogo, ideias. É gente. Foram muitos anos assim…”, diz, com os olhos marejados na única vez após horas de conversa. “Bom, vamos tomar um chá. Tem leite, Mazé?”
Olhando para a frente, Clara ainda quer participar da história. “Às vezes entro num lugar e as pessoas nem sabem que eu existo. Aí vem uma referência ‘agora a Clara Charf, viúva não sei o quê’. É muito delicado alguém querer se transformar em vedete. Não é por aí. Há milhares de pessoas como eu no Brasil. Muitos já morreram. Eu posso morrer amanhã. O que fiz está feito.”
O que fez lhe rendeu uma homenagem em Brasília nos últimos tempos, ao lado da escritora Rose Marie Muraro. “Escolhemos Clara e Rose pela importância que tiveram, têm e terão na história da democracia brasileira. Sobre Clarinha especialmente, costumo dizer que ela é um ‘m’atrimônio nacional. É uma menina, cheia de luz e de energia. Ela simboliza a mulher que rompeu com todas as barreiras. Quando pensávamos que ia sossegar, ela abraça o movimento Mulheres pela Paz! Se a condição feminina melhorou, é porque mulheres como Clara passaram e abriram caminho. Digo mais: tenho a convicção de que, se não fosse por mulheres como Clara, dificilmente teríamos uma presidenta hoje”, diz, com carinho, a ministra Eleonora Menicucci.
Às vésperas de mais um Dia Internacional da Mulher, Clara Charf ainda martela na importância das questões femininas na sociedade. “O que aprendi nesses anos todos: é preciso participar para conquistar espaço. Se eu tivesse ficado em casa, estaria até agora de braços cruzados, talvez fazendo tricô e casada com outro cara. Mas não consigo ver a vida da mulher isolada, partida da política. Hoje é relativamente mais ‘fácil’ ser mulher no Brasil, mas há muitos espaços a ganhar. A vida é construir, conquistar, pulsar. Para mim, a vida é luta.”
Acesse em pdf: A viúva vermelha (O Estado de S. Paulo – 0803/2014)