(O Globo, 09/04/2014) Violência contra a mulher no Brasil é real e banal. Está na música, nas ruas e nos boletins de ocorrência das delegacias de polícia
Se o Brasil voltasse duas semanas no tempo e os resultados da pesquisa “Tolerância social à violência contra a mulher” ganhassem as ruas sem traço de erro. Se recuasse um ano no calendário e os questionários do Sistema de Indicadores de Percepção Social não tivessem chegado aos 3.810 entrevistados. Se viajasse meio século na história, quando nem o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada existia. Ainda que qualquer das três hipóteses se materializasse, o Brasil seria um país em que a violência contra a mulher é real. E banal.
O teste, sem amostra estatística, formulários ou percentuais tabulados, está ao alcance de quem estiver disposto a enxergar um palmo adiante. Para começar, ouça a canção. Melhor dizendo, as canções. Para-raios de fenômenos sociais, compositores brasileiros eternizaram ameaças e maus-tratos em suas obras.
Rosa Maria Araujo, presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio, tem exemplo secular. Heitor dos Prazeres compôs “Mulher de malandro”, na primeira metade do século XX. A letra, de 1932, ensinava: “Ela vive com tanto prazer/ Quanto mais apanha/ A ele tem amizade”.
O mestre João Bosco, em 1976, deu voz a “Gol anulado”, que Elis Regina gravou oito anos depois. A música, parceria com Aldir Blanc, outro deus da MPB, começava explicando: “Quando você gritou mengo /No segundo gol do Zico /Tirei sem pensar o cinto /E bati até cansar”. Ali, a violência é impulso, detonado pela decepção.
Zeca Pagodinho, em 1997, tratou da banalidade das agressões de gênero em “Faixa amarela”. Lá pelo terço final do samba, a declaração de amor se torna ameaça de espancamento e execração pública: “Mas, se ela vacilar, vou dar um castigo nela/ Vou lhe dar uma banda de frente/ Quebrar cinco dentes e quatro costelas/ Vou pegar a tal faixa amarela/ Gravada com o nome dela/ E mandar incendiar/Na entrada da favela”.
Num pré-Mercosul macabro, Sidney Magal, lá nos anos 70, cantou “Se te agarro com outro te mato”, versão de Sebastião Ferreira para a canção do argentino Cacho Castaña. O refrão começa com o título, autoexplicativo, e continua com o verso “Te mando algumas flores e depois escapo”, numa evidente certeza de impunidade.
O funk não escapou. MC Martinho lançou, em 2010, “História real”, que conta como um traficante mata a companheira com uma pistola nove milímetros: “E, quando a encontrou, deu logo dois tirão (sic)/No peito que a derrubou”.
Se referências musicais não convencerem, repare as cantadas gratuitas – seguidas de ofensas – nas calçadas. Mire o efeito scanner da cabeça que vira na direção da menina que vai. Preste atenção no rapazola que toca, sem constrangimento, os cabelos da moça que passa. Abra os olhos às encoxadas nos vagões lotados de trens e metrô.
Se ainda faltarem evidências, monte o álbum de recortes com notícias de agressões, ataques, estupros, homicídios de namoradas, mulheres e ex, diariamente, Brasil afora. Um mês atrás, um jovem a cinco horas de completar 18 anos matou a ex-namorada Yorrally Ferreira, de 14, em Novo Gama (GO). Há 20 dias, em Belo Horizonte, o motoboy Gilmar Vitor da Paixão, de 37 anos, confessou numa rede social o assassinato da mulher, Fernanda Nagia, de 29, por ciúme.
São punhados de exemplos a confirmar que a violência contra a mulher está em toda parte. Reproduz-se na música. É visível nas ruas. E está atestada nos boletins de ocorrência das delegacias. Prescinde do Ipea. Não vê quem não quer.
Acesse o PDF: Não vê quem não quer, por Flávia Oliveira