(Brasil de Fato, 10/04/2014) Reza o dito popular que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. Apesar de não haver nenhuma confirmação sobre tal afirmação, o fato é que a ocupação sempre levantou inúmeras polêmicas ao longo dos séculos.
Em tempos de megaeventos como Copa do Mundo e Olimpíadas no Brasil, a discussão da regulamentação ou não da profissão ganhou corpo. O Projeto de Lei nº 4.211 de 2012, também conhecido como Projeto de Lei Gabriela Leite, foi apresentado pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL RJ) na Câmara dos Deputados e divide opiniões.
O projeto foi batizado em homenagem a ativista e criadora da ONG Davida, que luta pelos direitos das prostitutas. Gabriela, falecida no final de 2013 por conta de um câncer, cursava filosofia na USP quando, aos 22 anos, resolveu virar prostituta.
Pensado para ser votado antes da Copa do Mundo, por conta do alto fluxo de turistas no país, o projeto ainda está aguardando a indicação dos nomes dos parlamentares que farão parte de uma comissão especial, depois irá a plenário da Câmara e se aprovado, para o Senado.
Jean afirma que a importância do projeto é que ele muda a vida das profissionais pois as colocam no mercado de trabalho formal com todos os direitos e deveres de um trabalhador qualquer.
“Muda o vácuo legal a que as profissionais (e os profissionais também) estão submetidos. Muda a insegurança jurídica em não ter sua atividade proibida, mas ter os locais de desempenho desta função criminalizados, mesmo que seja uma simples partilha de aluguel de um pequeno apartamento. Muda uma infinidade de questões que tiram um grupo difamado há milênios da sujeição à violência do próprio Estado, cuja banda corrupta lucra se fazendo de cego ao crime organizado e lhe provendo a segurança de sua operação. Muda a realidade de pessoas que, por conta da operação dessas quadrilhas, são exploradas e escravizadas”, explicou.
A diferenciação entre prostituição e exploração sexual é o ponto central do projeto. No artigo 1º é decretado que “considera-se profissional do sexo toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração”, e no artigo 2º criminaliza-se a exploração sexual, que se dá quando há apropriação de mais de 50% do pagamento por serviços sexuais a terceiros; quando há a obrigação de alguém a praticar a prostituição mediante grave ameaça ou violência; e o quando não há pagamento pelo serviço contratado.
“Visão liberal” da prostituição
Contrária ao projeto, Maria Fernanda Marcelina, membro da Sempreviva Organização Feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres, questiona a tentativa de separar o que é exploração sexual de prostituição.
“Para nós não existe isso. Prostituição é exploração sexual porque as mulheres são a parte mais empobrecida de uma sociedade patriarcal e a sexualidade feminina vira mercadoria e está quase sempre ligada ao prazer masculino”, criticou.
No final de 2013, as mulheres da Central Única dos Trabalhadores (CUT) marcaram posição no debate e se mobilizaram contra o projeto defendendo que ele só favoreceria “aqueles que lucram com a exploração do corpo das mulheres”.
A Marcha Mundial das Mulheres – que considera o projeto liberal e em uma cartilha intitulada “Prostituição: uma abordagem feminista” – declarou que “fazer o que quiser do corpo sem uma crítica e rompimento com as práticas patriarcais não é liberdade. Por isso, reforçamos a vinculação entre liberdade e autonomia, buscando realmente decidir sobre nossa vida e sexualidade, sem a indução pela vontade dos outros”.
O artigo que legaliza o funcionamento das casas de prostituição e o que permite que se aproprie 50% ou menos do rendimento da prostituta sem que isso seja considerado exploração sexual, é outra crítica das feministas, que consideram se tratar de liberação da prática da cafetinagem.
“É hipocrisia dividir uma porcentagem e dizer que abaixo disso pode, acima não pode mais, não quebra a relação de exploração entre o cafetão e a prostituta, muito pelo contrário, se baseia em uma relação entre patrão e empregada que todos nós sabemos quem leva a pior”, disse Maria Fernanda.
Já o deputado vê a linha que separa a prostituição e a exploração como muito clara e defende que os agenciadores não podem ser confundidos com a figura de um explorador e, sim, como alguém que auxilia as prostitutas.
“Há uma linha clara entre o que é um acordo justo entre partes e o que é apropriação indevida. O projeto define um teto ao agenciador e um piso às profissionais. O que ocorre dali em diante é uma negociação trabalhista que ocorre nas mais diversas áreas profissionais. Esta é a imagem (agente como explorador) que o nosso Código Penal cria erroneamente. O agenciador provê um imóvel em boas condições de uso, provê a limpeza, mobiliário, manutenção do espaço, cuida da agenda e da segurança. E por isto, cobra uma porcentagem em cima desse trabalho. A distorção é tão grande, que a pessoa que é contratada para fazer a limpeza daquela casa de prostituição pode ser presa por lenocínio, já que seu rendimento é proveniente da prostituição de outrem”, observa.
Políticas públicas e a saída da prostituição
Considerando a complexidade do assunto, outros dois pontos são levantados pelos que defendem e criticam o projeto: quais os deveres que o Estado terá com essas profissionais? Cabe a ele garantir que essas trabalhadoras deixem esse ramo de atividade se assim desejarem?
Maria Fernanda Marcelina diz que o projeto não garante de fato nenhum direito as profissionais e que o caminho ideal seria o reforço das políticas públicas específicas para prevenir, informar e tirar as mulheres da prostituição.
“De fato são necessárias políticas específicas para melhorar a condição delas, que são as principais vítimas dessa situação de exploração. Algumas coisas poderiam ser feitas já de imediato como prioridade no acesso a compra de casas populares, uma linha específica do SUS e programas de geração de renda e capacitação profissional pra que deixem de ser exploradas”, afirmou.
Wyllys, por sua vez, defende que com a regulamentação, as prostitutas passarão a ser ouvidas pela sociedade e, principalmente, por governos que poderão traçar as políticas públicas que julgarem necessárias.
“Com a regulamentação, as prostitutas deixam de ser invisíveis. Aquelas campanhas destinadas a elas, canceladas pelas lideranças fundamentalistas, passam a ser uma responsabilidade real do Executivo, assim como são para todas as outras profissões regulamentadas. Se vão existir políticas habitacionais a partir disto não nos cabe discutir agora. A discussão no momento, e que é realmente importante, é que as prostitutas saiam da invisibilidade legal e tenham acesso, como qualquer outro profissional, à cidadania plena. Isto não é um favor a se prestar, uma concessão, é uma obrigação”, defende.
Sobre a saída da prostituição para aquelas que desejarem, Jean critica quem deseja manter as pessoas distantes da prostituição por meio da proibição e afirma que as profissionais poderão participar de programas do governo assim como qualquer outro trabalhador registrado.
“Para muitas, (o projeto) traz a oportunidade de deixar a profissão quando quiserem, por livre vontade. Para outras, é a oportunidade de participar de programas de aperfeiçoamento profissional do próprio governo, oferecido a todos os outros trabalhadores registrados. E, a partir dele, podem ser criados novos projetos”, afirma o deputado.
Segundo ele, em milênios de cegueira seletiva do Estado, nenhuma iniciativa séria foi adiante, exatamente pela cultura de que proibir é a melhor forma de manter tais pessoas distantes da prostituição, o que é de uma ignorância sem tamanho, na qual, infelizmente, caem algumas feministas que tem atacado o projeto.
“Proibir não tira ninguém da prostituição, apenas leva tais pessoas a uma condição marginalizada de sujeição a todo tipo de violência física e simbólica. É algo elementar demais para ser ignorado”, declarou.
“Calar as prostitutas não é o caminho”, diz Jean
O deputado, que está alinhado com as feministas em pontos sensíveis como a legalização do aborto, critica a posição delas contra o projeto e ressalta a importância das prostitutas assumirem o posto de protagonistas na luta.
“Curiosamente, as prostitutas encontraram apenas em homens o espaço para sua luta. Antes de mim, Gabeira foi o porta-voz da luta da Rede Brasileira de Prostitutas, onde Gabriela Leite, ainda na década de 1980, já organizara o primeiro encontro nacional das prostitutas. Uma luta antiga e sólida, que não pode ser simplesmente ignorada por um feminismo abolicionista que não leva em conta a voz dessas prostitutas”, informa Jean.
“As mulheres da CUT, por exemplo, nunca me procuraram para conversar sobre o Gabriela Leite — como, em outras ocasiões, já me procuraram para apoiá-las em outras lutas das quais também faço parte, como a luta pela legalização do aborto e contra o assédio moral no mercado de trabalho —, como também não procuraram o movimento das prostitutas. Que se dê voz à Rede Brasileira de Prostitutas. Calá-las não é o caminho para a construção de uma democracia afinada com a defesa dos direitos humanos”, critica.
Acesse o site de origem: A prostituição em xeque, por Bruno Pavan