(Correio Braziliense, 26/04/2014) O Brasil é um país machista? E o que é o machismo, afinal? Ainda faz sentido falar em machismo no século 21, considerando as inúmeras conquistas das mulheres, que, nos dias de hoje, representam cerca da metade da força de trabalho no país e estão presentes em praticamente todas as categorias profissionais? Há taxistas, pilotos de avião, cirurgiãs, juízas, presidentas de grandes corporações, parlamentares, presidenta do Brasil. Foram muitas transformações em poucas décadas.
É preciso relembrar que até poucos anos atrás, conforme o Código Civil vigente desde 1916, as mulheres eram relativamente incapazes e a prática de atos como comprar, vender e trabalhar dependia da anuência de seus maridos. O casamento era indissolúvel e a adoção do nome do marido pela mulher era obrigatória. Os filhos concebidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, o que desonerava o pai e atribuía à mãe as responsabilidades com as crianças “bastardas” como forma de punição simbólica ao desrespeito com a família.
Esta situação de subalternidade legal das mulheres foi alterada apenas em 1962, com o advento do Estatuto da mulher Casada, em que as mulheres recuperaram sua plena capacidade civil. Apenas neste momento, tornou-se inexigível a permissão masculina das mulheres para trabalhar. A indissolubilidade do casamento foi revogada somente em 1977, quando se aprovou a Lei do Divórcio. A alteração significativa do status da mulher diante da lei se deu apenas com a Constituição de 1988. Pela primeira vez, há apenas 26 anos, enfatizou-se a igualdade entre homens e mulheres – em direitos e obrigações – no ordenamento jurídico brasileiro. Seguramente, este é um processo muito recente.
É evidente que essas mudanças não são naturais nem correspondem a um processo evolutivo da sociedade. Decorrem de tensões e intensos debates impulsionados por grupos interessados em alterar o estado das coisas. Foi o movimento feminista que, especialmente a partir dos anos 1960, empreendeu lutas libertárias em diversos países e passou a reivindicar a efetiva igualdade entre homens e mulheres. Nesse contexto, surgiu a terminologia “gênero” – em oposição a “sexo” – para denominar o modo como significamos socialmente nossa existência enquanto homens e mulheres.
Com isso, afastamos os essencialismos biológicos e, aos poucos, fomos entendendo que não nascemos com papéis pré-determinados a orientar nosso comportamento. Foi assim que, aos poucos, deixamos de caracterizar o casamento e a maternidade como destinos irrevogáveis. O caráter reprodutivo do sexo perdeu valor diante dos avanços tecnológicos – tanto de reprodução como de contracepção. Revolucionamos nossa sexualidade e abrimos espaço para a fruição dos nossos desejos. O prazer feminino finalmente ingressa no campo do possível fazendo com que a liberdade sexual torne-se um dos principais anseios das novas gerações pós-industriais. A subserviência das mulheres aos homens tornou-se, nesse processo, um padrão de comportamento desatualizado e inaceitável, tanto do ponto de vista legal quanto social.
No entanto, retomando as perguntas iniciais, é possível, então, afirmar que o machismo é uma palavra sem sentido fático na atualidade? O processo descrito acima marca a efetiva superação das desigualdades entre mulheres e homens? Sentimo-nos todos, independentemente de nossa identidade sexual, livres e igualmente respeitados na sociedade? Para responder a esta pergunta, parece ser necessário dividi-la em três aspectos: relações na vida pública; relações na vida afetiva, doméstica e familiar; e relações que podemos denominar aqui de público-privadas.
Nas relações da vida pública, houve significativos avanços. O direito ao voto feminino, conquistado em 1946, foi o mais importante da primeira metade do século passado. A possibilidade de votar e de ser eleita representa um passo decisivo para a afirmação da cidadania. Além disso, a inserção maciça no mercado de trabalho, nas escolas e universidades possibilitou a tão proclamada autonomia financeira e econômica das mulheres, fazendo com que lares chefiados por mulheres tenham quadruplicado na última década. O direito à licença-maternidade também representou uma atenção especial a esta categoria profissional crescente e produtiva. No entanto, apenas cerca de 5% dos cargos de chefia são ocupados por mulheres e a desigualdade salarial entre sexos persiste em torno de 30%. No campo político, apenas para exemplificar o deficit de participação feminina, apenas 8% das cadeiras na Câmara dos Deputados são ocupadas por mulheres.
Quanto às relações na vida afetiva, doméstica e familiar, podemos inferir a persistência de profundas desigualdades que desencadearam, inclusive, a aprovação de uma lei específica para coibi-las: a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006. O surgimento deste instrumento legal derivou de intensos debates sociais e da condenação do Brasil na Organização dos Estados Americanos, em virtude da omissão diante do caso de Maria da Penha Fernandes, cujo ex-marido foi condenado a apenas dois anos de prisão após duas tentativas de homicídio. A lei, considerada pela ONU uma das mais avançadas do mundo, protege as mulheres de modo especial quando houver violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Sua necessidade justifica-se pelos dados recentes que mostram que a cada 15 segundos uma mulher sofre violência no Brasil.
O Brasil ocupa o sétimo lugar no ranking de homicídios de mulheres no mundo. Estima-se que cerca de 70% dessas ocorrências se dão no ambiente doméstico. São graves violações aos direitos humanos que ocorrem cotidianamente e causam graves danos à dignidade das mulheres. Como explicar a persistência desse fenômeno em uma sociedade em franca transformação social? O enfrentamento à violência contra as mulheres é, sem dúvida, pela sua natureza, complexa e multicausal, um dos principais desafios do poder público na atualidade.
O último aspecto diz respeito às relações que denominei aqui de público-privadas. São as relações que se dão entre pessoas que não possuem, necessariamente, vínculo de afeto ou familiar, mas que são marcadas, igualmente, por preconceitos ou discriminação de gênero, causando violências dos mais diversos tipos e, especialmente, sexuais. São as violências advindas da privação da liberdade feminina de expressar sua sexualidade. São os atos de tentativa de apropriação do corpo da mulher, não apenas do seu aspecto físico, mas simbólico. São atos cometidos não apenas por homens, mas por ampla parcela da sociedade que busca um redisciplinamento da mulher.
Os estupros, as tentativas de estupro e as importunações ofensivas ao pudor são apenas tipos penais de um fenômeno muito mais amplo que fala de estruturas de comportamento arraigadas em nossa cultura desde tempos imemoriais. A denúncia crescente de estupros (foram notificados 50.617 estupros no Brasil em 2012); estupros coletivos (como os ocorridos recentemente em Queimadas, na Paraíba, e o que vitimou uma jovem norte-americana no Rio de Janeiro) e de assédios nos transportes públicos – denominados “encoxadas” – trazem a necessidade de compreender melhor as causas do fenômeno para encontrar saídas efetivas. A questão central a ser destacada é que, em vez de interpretados sob a ótica médica, que os caracteriza como doenças, desvios individuais ou aberrações, os atos de violência sexual devem ser pensados como tentativas de afirmação do poder masculino e dos valores patriarcais em uma sociedade em que papéis sexuais vêm sendo flexibilizados e repensados.
Os esforços estatais destinados à erradicação dessas violências são cada vez maiores nos últimos anos. Milhares de serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência têm sido criados em todos os estados brasileiros, buscando atingir mulheres das mais diversas condições socioeconômicas. Agentes públicos ligados ao sistema de Justiça – promotores, defensores públicos, advogados, delegados e juízes – têm se articulado de modo constante com profissionais dos serviços psicossociais e de saúde no sentido de efetivar a lei e as políticas desenvolvidas na esfera federal, por meio da Secretaria de Políticas para as mulheres, e estadual. Atualmente quase a totalidade dos governos estaduais possui secretarias específicas para a defesa dos direitos das mulheres.
Paralelamente à atuação do poder público, há expressões renovadas do movimento de emancipação de mulheres no Brasil. Tributários do feminismo moderno, que garantiu a inserção das mulheres na vida pública, os movimentos contemporâneos parecem caminhar no sentido de conquistar consciências e novas formas de relacionamento entre as pessoas, independentemente de sua identidade sexual.
A realização de manifestações recentes como a Marcha das Vadias e o Toplesasso denotam o intento da sociedade civil em participar e construir novos rumos para as relações interpessoais no Brasil. Ainda que parcialmente restritos a mulheres jovens pertencentes a classes médias e escolarizadas, estes movimentos representam um processo de transformações e reflorescimento das lutas feministas no país. Altamente midiatizados, discutem e divulgam suas pautas por meio das redes sociais e definitivamente não podem ser contabilizados pelo número de pessoas presentes nas manifestações.
A adesão de pessoas a ideias de igualitarismo e liberdade sexual torna-se incomensurável diante do fenômeno das redes sociais, principal veículo de mobilização dos movimentos contemporâneos. Logo, os debates sobre o machismo, este fenômeno visível e invisível ao mesmo tempo, parecem ganhar cada vez mais espaço na pauta pública e social. Novos contornos para os campos do admissível e do inadmissível nas relações interpessoais parecem estar sendo desenhados. Sem dúvida, se são tempos de discussão sobre a opressão, também são tempos de discussão sobre a emancipação. Se o feminismo liberta as mulheres, poderá também libertar os homens?
* Ana Paula Antunes Martins é bacharel em direito, pesquisadora em feminismo e relações de gênero, doutoranda em sociologia na Universidade de Brasília (UnB) e colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a mulher (Nepem), da UnB