(Carta Capital, 29/04/2014) Gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais também foram alvo da violência e perseguição do Estado brasileiro durante a ditadura civil-militar (1964-1985). O movimento de resistência LGBT foi sufocado, reprimido e impedido de se desenvolver, como ocorria em outras partes do mundo na época.
Um dos maiores estudiosos no assunto, o historiador brasilianista James Green, da Universidade de Brown (EUA) e fundador do Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, esteve recentemente no Brasil, onde anunciou que será um dos responsáveis pelo capítulo de homossexualidade do relatório da Comissão Nacional da Verdade ao lado do advogado Renan Quinalha, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Na capital paulista, Green participou de uma audiência organizada pelas duas comissões ao lado de pesquisadores e militantes LGBT que irão lançar, em novembro, o livro Ditadura e homossexualidade no Brasil: repressão, resistência e busca da verdade.
O historiador norte-americano, autor de livros como Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX e Apesar de vocês: a oposição e a ditadura militar brasileira nos EUA, deve lançar em 2015 uma biografia do ativista gay e guerrilheiro Herbert Daniel, morto em 1992.
Em entrevista a Carta Capital, Jimmy, como é conhecido, falou sobre a luta do movimento LGBT durante o período e de suas dificuldades com o regime, inclusive dentro da própria esquerda.
CartaCapital: É possível traçar um panorama geral da luta dos movimentos LGBT durante a ditadura?
James Green: Os anos de 1967 e 1968 foram muito importantes mundialmente porque foi um momento de questionamento de papéis de gênero, sexualidade, identidade. Surgem novas propostas identitárias, movimentos sociais de gays tanto na Europa, quanto nos EUA e América Latina. Aqui no Brasil também surgem, nesse período, novas maneiras de entender o corpo, a sexualidade e o gênero. E depois de um ano muito intenso de mobilizações contra a ditadura veio o AI-5, em 1968, que abafou totalmente qualquer possibilidade de formação de novos movimentos sociais. Meu argumento é que se não houvesse o AI-5 e essa repressão da ditadura, se houvesse um estado como o JK, um governo Jânio Quadros ou João Goulart, certamente teria surgido, em 1968, 1969, o mesmo tipo de organizações que existiam na Argentina ou em Nova York, organizações LGBT, feministas, que iriam forjar movimentos de questionamento do conservadorismo da sociedade brasileira. A ditadura prejudicou muito, afetou muito e atrasou cinco, seis, sete anos, as possibilidades de surgimento de movimentos.
Com as manifestações estudantis em 1977 cria-se uma nova noção de “é possível sair na rua, contestar, questionar o poder do estado”. É quando surge o jornal “Lampião” e logo depois o grupo que vai tomar o nome Somos, em São Paulo, em 78, e um primeiro momento de um diálogo e consolidação internos, um processo de aglutinação de pessoas e depois, a partir de 79, uma visibilidade pública. Esse momento é muito rico e coincide, quando, em 1978, o movimento operário sai de dez anos de proibição de greves e vai organizar as greves de 78, 79. E justamente em 1980, quando há, de um lado a greve geral do ABC enfrentando a política econômica e a Lei de Segurança Nacional, e, do outro lado, uma tentativa de juntar os nove grupos que já haviam surgido no país a partir da fundação do grupo Somos em Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Guarulhos. E no nosso congresso decide-se o apoio à greve geral e surge a proposta de ir ao Primeiro de Maio justamente durante a greve.
É quando há um debate muito intenso. No movimento gay, há um setor que não queria tentar diálogo com o movimento sindical, porque achava que seria uma experiência infeliz. E o outro, mesmo sem saber quais seriam os resultados, resolveu ir participar e levantar conceitos novos totalmente revolucionários para os anos 80: contra a discriminação do trabalhador homossexual, colocando a possibilidade de um dia o sindicato defender o membro homossexual. Aquilo era impensável naquela época.
CC: Como era a relação do movimento com a esquerda? Como se dava a articulação entre as demandas do movimento e as pautas históricas da esquerda?
JG: Entre 1964 e 1974 tínhamos uma esquerda cuja origem era o Partido Comunista ou organizações criticando o Partido Comunista, como a Polop. Elas tinham essa noção marxista tradicional que incorporava tanto uma série de noções sobre homossexualidade como a noção católica tradicional, e noções de gênero, que homem tem que ser macho e mulher frágil. Nesse sentido, a esquerda não foi nada renovadora. Foi muito controladora nos papéis. Mas nos anos 1970 surgem novas organizações que rompem com o passado, como a Liga Operária, a Convergência Socialista e a Liberdade e Luta [Libelu]. Tais organizações tinham outras ideias, influências. Eles não eram tão rígidos e sua composição social era diferenciada. Era uma nova geração de jovens que entraram no movimento estudantil, que tinha fumado maconha, escutava rock and roll, não achava que Beatles eram agentes do imperialismo.
Já no período da abertura, ainda havia partidos como o Partido Comunista, o MR8 e o PCdoB, que mantiveram uma linha muito controladora, muito rígida. Mas havia outros setores que questionavam esses valores, como o jornal “Em Tempo”, que aglutinava várias correntes da esquerda. Havia pessoas que estavam no exílio e que foram influenciadas pelas modificações dos novos movimentos sociais na França, na Europa como um todo e que voltaram com questionamentos. Essas brechas deram espaço para a abertura de diálogo na esquerda.
CC: O sr. Poderia falar sobre o livro que está escrevendo sobre Herbert Daniel [Herbet Eustáquio de Carvalho, (1946- 1992, militante, jornalista e ativista LGBT]? Como ele transitou entre a luta armada e o universo LGBT?
JG: Herbert Daniel foi uma pessoa muito interessante. Quando ele estava no final dos estudos escolares, foi para um colégio militar e depois entrou na faculdade de Medicina, em 1965. Ele descobriu um mundo gay e relações sexuais eventuais. Mas, na universidade, entra em contato com o movimento estudantil e fica apaixonado por essa energia crítica, começa a conviver com a esquerda dentro da faculdade de Medicina. Nessa época, um membro do Partido Comunista tenta ganhá-lo para a organização sem saber que ele é homossexual. Mas ele entra para um grupo político que é um racha da Polop, que depois vira Colina. Quando ele entra na organização, vê que não é fácil ser homossexual e chega à conclusão que a única solução é sublimar, reprimir a sua sexualidade. Assim, entre 1968 e 1972 ele não transa com outros homens. Ele se apaixona por um companheiro de organização e confidencia esse amor para um amigo, que é dirigente de tal organização. No entanto, essa geração não cria um espaço para que se assuma a homossexualidade.
Em 1968, com a entrada dessas organizações para a luta armada, eles entram num ritmo enlouquecido, no qual não havia tempo para se discutir, não havia acesso ao debate sobre opressão, sexualidade e luta revolucionária. Ele cede à pressão da organização e reprime sua sexualidade durante quatro anos. Por conta da luta armada, ele acaba escondido num apartamento em Niterói (RJ), momento em que começa a ter, eventualmente, relações. E faz amizade com uma pessoa, o Claudio Mesquita, que depois vai ser seu companheiro durante 20 anos. O livro sobre a vida dele deve ser publicado em 2015.
CC: Gostaria que falasse sobre o seu artigo “Whos is the macho who wants to kill me” (“Quem é o machão que quer me matar?”), sobre um episódio em que presos políticos teriam cogitado matar dois militantes presos porque eles estavam tendo relações sexuais, publicado na edição 9 da revista “Anistia Política e Justiça de Transição”?
JG: Com esse artigo, meu objetivo foi abrir diálogo com a esquerda sobre a homofobia desse período e cobrar uma reflexão, fazer o debate dessa geração. Essa história dramática envolveu dois militantes revolucionários que não abriram nada na tortura e resolveram, no presídio Tiradentes, ter uma relação afetiva. Quem me contou essa história foi o Ivan Seixas. Depois, falei com Chaim, um dos militantes, e ele não se lembrava que havia ocorrido uma tentativa de justiçamento, apenas uma marginalização. No final do artigo eu aponto que há uma outra versão para a história, porque um dos envolvidos no caso, a quem entrevistei, fala que não se lembra do episódio. Como ele sofreu muito na prisão, pode ser que tenha apagado parte dessa memória.
Acho que as pessoas ainda não querem falar sobre esse assunto, para não voltar a um passado onde talvez percebam que não tinham razão em suas posições. O mais importante, acho, não é se realmente aconteceu, mas a possibilidade de isso ter acontecido. Pois há coisas piores que aconteceram, como a morte de pessoas nas organizações com medo que elas entregassem companheiros. A ideologia da esquerda era de que gays eram frágeis, que na hora da tortura, do choque, iriam contar tudo. Mas o Chaim não abriu nada. Inclusive, na documentação dele no Dops consta, claramente, que não abriu nada.
CC: O sr. está coorganizando um livro sobre o tema ditadura e homossexualidade e que será lançado em novembro. O que pode adiantar sobre o trabalho?
JG: Juntamos um grupo de pesquisadores que tem trabalhado nesse assunto durante os últimos anos. Cada um pegou um momento, uma temática sobre o assunto da ditadura e aprofundou. Isso será apresentado para o grande público interessado nessa temática. E também nos ajudará a preparar as recomendações que enviaremos à Comissão Nacional da Verdade. São nove artigos. Há pesquisas inéditas, como a de Benjamin Cowan (George Mason University, dos Estados Unidos), que trabalha com o discurso da Escola Superior de Guerra, discurso sobre moral, que é profundo. A Marisa Fernandes recupera a questão das lésbicas e ativistas. O trabalho da Rita [de Cassia Colaço Rodrigues (UFF)], é sobre o do Lampião, que foi acusado de violar a menina que ele tinha adotado. Ele foi muito marginalizado por ser gay. São vários exemplos que queremos utilizar para começar a refletir sobre a influência da ditadura na vida dos gays e lésbicas nesse período.
CC: Qual é a sua expectativa em relação ao relatório final da Comissão Nacional da Verdade?
JG: No relatório final haverá um capítulo de recomendações e eu imagino que pelo que vários comissionados têm falado, uma delas será de revisitar a Lei de Anistia para que o STF anule a lei. As recomendações podem servir para se seguir adiante com as lutas de vários setores que querem justiça e a revelação do passado. O fato de nunca ter havido um questionamento quanto à repressão policial, à tortura, às prisões arbitrárias dá carta branca para a polícia fazer o que bem quiser no Brasil de hoje. Se tivesse havido uma avaliação profunda desse período talvez o tratamento dado aos manifestantes de junho [de 2013] não tivesse sido tão horrível. Porém, o Estado acredita que tem o direito de reprimir. Isso acontece porque infelizmente há um legado da ditadura de 64 a 85 que dificulta a articulação democrática.
Acesse no site de origem: “O AI-5 atrasou por anos o movimento gay no Brasil” (Carta Capital, 29/04/2014)