Marco Civil da Internet aguarda a voz da sociedade

06 de maio, 2014

(Agência Senado, 06/05/2014) Lei sancionada entra em vigor no dia 23 de junho, mas pontos importantes ainda precisam ser detalhados com o estabelecimento de regras pelo governo. Especialistas advertem que o acompanhamento público precisa ser mantido durante a regulamentação para evitar que pressão das grandes empresas reduza os direitos conquistados pelos internautas

Comemorado como um avanço que põe o Brasil na vanguarda da garantia dos direitos dos internautas e da liberdade de expressão, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) entra em vigor em 23 de junho, 60 dias depois de ter sido sancionado pela presidente Dilma Rousseff. Mas três questões importantes aguardam regulamentação, com estabelecimento de regras pelo Executivo: neutralidade da rede (artigo 9), proteção aos dados pessoais (artigos 10 e 11) e guarda dos registros de conexão e de acesso a aplicações (artigos 13 e 15).

No momento da sanção, Dilma anunciou que pretende discutir com a sociedade para preparar o texto final. Isso mantém o caráter democrático e participativo do marco civil, cuja elaboração foi aberta a contribuições antes mesmo de virar projeto no Congresso. A lei não depende da regulamentação para entrar em vigor e a regulamentação não pode ir contra a lei. Mas existe a possibilidade de as grandes empresas de internet aproveitarem o processo para pressionar de forma que o marco civil fique menos favorável aos usuários.

Neutralidade da rede, por exemplo, significa a garantia de navegação sem velocidades ou preços diferenciados de acordo com o conteúdo acessado (e-mail, sites, mensagens instantâneas, vídeos ou downloads). Teme-se que na regulamentação surja um número exagerado de exceções para preços maiores ou velocidades menores. Facebook e Twitter têm contrato com algumas operadoras de celular para conexão gratuita. Pela lei, isso será proibido. A regulamentação pode definir se ficará entre as exceções.

— Tão importante quanto a aprovação é uma boa regulamentação. Temos que ficar de olho, porque a batalha já está acontecendo — afirmou Ronaldo Lemos, representante da sociedade civil no Conselho de Comunicação Social do Congresso e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade, na Universidade do estado do Rio de Janeiro (Uerj) . Ele ajudou a idealizar o marco desde 1997 e vai participar das discussões sobre a regulamentação.

O governo ainda não marcou reunião e Lemos acredita que esteja sendo finalizado o conteúdo para apresentação de um cronograma. Mesmo depois que tudo for regulamentado, o advogado pretende acompanhar a aplicação do marco civil porque, diz ele, será o momento da interpretação pelo Judiciário.

Sem data

A regulamentação não tem data-limite para ser concluída, como informou o consultor do Senado Marcus Martins. De acordo com ele, as reuniões com entidades e organizações acontecerão apenas se o ­governo quiser, já que a lei não determina essa obrigatoriedade.

— Sobre a neutralidade, a Casa Civil deve elaborar um decreto após ouvir o Comitê Gestor da Internet (CGI) e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Uma das exceções para emergência deve ser a telemedicina, que precisa ter prioridade no tráfego. Entre as exceções para requisito técnico, devem ser observadas as particularidades de cada serviço. Para e-mail, um atraso de cinco segundos são imperceptíveis. Para vídeo em tempo real, faz diferença — explicou.

De acordo com o consultor, a regulamentação será feita em partes, com uso de decreto somente quando a lei explicita isso, como faz o artigo sobre neutralidade da rede. Para outros casos, pode haver uma portaria do Ministério da Justiça, uma resolução da Anatel ou outros instrumentos regulatórios. O CGI é um órgão com representantes do governo, setor privado e consumidores, o que aumenta a participação social na regulamentação.

Uma das questões mais importantes foi a privacidade pessoal. Martins diz que o artigo 7, com direitos e garantias dos usuários, tem avanços significativos, como o fato de os dados de registros só poderem ser abertos por ordem judicial ou quando o internauta autorizar.

Ao excluir o perfil no Facebook, por exemplo, a pessoa tem o direito de solicitar que todos os dados pessoais sejam apagados dali. É o direito ao esquecimento. A última empresa que guardou os dados só poderá mantê-los com autorização individual. Hoje os dados são vendidos quase instantaneamente.

— Esses dados geram muito dinheiro. O que o Google faz? Pega todas as informações da sua pesquisa e vende para o comércio. Aí, se você pesquisou por um carro, começa a receber propaganda de carros, por e-mail, nas redes sociais ou na própria ferramenta de pesquisa. Em algum tempo, eles reúnem todos os seus hábitos de consumo, os seus interesses. Agora, graças ao marco civil, essas empresas só podem fornecer seus registros a terceiros se você permitir — afirmou o consultor.

Vingança pornô

Quando um conteúdo ofensivo for postado por usuários, o provedor de internet não pode ser responsabilizado. Essa é uma forma de evitar a censura na internet. Mas há exceções: sem precisar de ordem judicial, deve ser retirado do ar tudo que infrinja a lei — pedofilia, racismo ou violência, por exemplo.

Há ainda a “vingança pornô”: postagem de fotos ou vídeos que violam a intimidade, sem autorização de divulgação, mesmo quando a gravação de cenas de nudez ou atos sexuais foi consentida. Nesses casos, que já resultaram até em suicídio da pessoa exposta, o site ou provedor de conteúdo será punido se mantiver o material após pedido de retirada pela vítima, sem necessidade de intervenção da Justiça. Além disso, com a guarda obrigatória dos registros de conteúdo durante seis meses “em ambiente controlado e de segurança”, fica fácil para a polícia identificar o autor da postagem inicial e também quem transmitiu.

Ainda assim, há quem defenda que a guarda dos registros de conteúdo por seis meses ganhe restrições na regulamentação ou até seja alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI). Teme-se uma brecha para vigilância em massa, já que autoridade policial ou administrativa poderão requerer informações pessoais. Para evitar abusos nos acessos aos dados, a regulamentação pode definir quais autoridades obterão informações e quais prazos existirão para solicitá-las.

No dia da sanção, Dilma respondeu a 1,2 mil perguntas pelo Facebook e negou que a guarda de registros ponha em risco a liberdade individual ou a privacidade, alegando que o acesso será restrito e condicionado à decisão judicial.

— O armazenamento de dados não afeta a liberdade individual porque é vedada às empresas e aos governos a violação da privacidade de dados, seja no que se refere a pessoas, no que se refere às empresas e ao governo. Haverá um decreto regulamentando essa lei. Ele será discutido amplamente pela internet e com toda a sociedade para que nós possamos aprimorar cada vez mais esse dispositivo que assegura a privacidade, coibindo eventuais abusos — disse a presidente no chat do dia da sanção.

As empresas que descumprirem o Marco Civil da Internet poderão ser punidas com multas de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil, no último exercício, excluídos os ­tributos. Também estão ­previstas penalidades como proibição de coleta e armazenamento de registros, suspensão temporária dessas atividades e advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas.

Senado dispensou debate para a aprovação

O marco civil foi aprovado no Senado em menos de um mês, na véspera da sanção durante o evento NETmundial, que reuniu em São Paulo representantes de mais de 90 países para debater a gestão da internet. A intenção era aproveitar o momento em que o Brasil era foco das atenções. Na Câmara, porém, foram três anos de discussão, com audiências públicas em todo o país e sugestões enviadas pela internet. Isso levou alguns senadores, principalmente os de oposição, a criticar o que classificaram como pressa no Senado, destacando que muitos pontos poderiam ser aprimorados.

Mesmo entre senadores da base aliada havia intenção de melhorar o texto. Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), por exemplo, havia apresentado nove emendas. Retirou todas para permitir que a aprovação acontecesse a tempo de a lei ser sancionada no NETmundial. Ela pretende apresentar as sugestões de mudança na forma de projetos de lei.

— Vamos continuar a avançar. É uma boa lei, entretanto queríamos que alguns pontos fossem mais avançados.

Foi um primeiro passo reconhecido por todos, inclusive pela oposição, que inicialmente não queria votar o projeto, mas votou — afirmou a senadora.

Espionagem

Vanessa presidiu a CPI da Espionagem, que, de setembro a abril, investigou denúncias de que o governo dos Estados Unidos teria monitorado milhões de e-mails e telefonemas no Brasil, inclusive os da presidente Dilma Rousseff. Entre os projetos que a senadora pretende apresentar para aprimorar o marco civil, está o aumento da segurança para guarda dos dados dos usuários, preservando a intimidade e a privacidade dos internautas, e a definição de que a guarda dos dados públicos da União, dos estados e dos municípios tem que ser feita em centro instalado em território nacional.

— Como justificar que os dados do nosso sistema financeiro, do nosso sistema energético, ou mesmo as bases de dados dos nossos cidadãos fiquem hospedados em outros países? — questionou Vanessa.

A proposta original do governo previa a manutenção em território nacional da estrutura de armazenamento de dados, os chamados data centers. Mas essa parte foi derrubada na votação do projeto na Câmara. No dia da sanção, Dilma afirmou que o governo não pretende editar nenhuma legislação fora do marco civil para regulamentar essa questão.

Direitos autorais terão leis específicas

Especialistas não veem com simpatia o apelido “constituição da internet” para o marco civil. Ele não esgota o assunto, mas estabelece conceitos onde se apoiarão leis futuras sobre o mundo digital. Muita coisa pode ser detalhada com leis específicas. É o caso dos direitos autorais, discutidos há mais de sete anos para combater principalmente a pirataria de músicas, filmes e livros. Ronaldo Lemos informou que um texto do governo foi submetido a consulta pública e está sendo analisado pelo Ministério da Cultura para elaboração de projeto. O tema foi retirado da proposta inicial do marco civil ainda na Câmara.

Também aguarda lei específica a proteção dos dados pessoais, apesar dos mecanismos já citados no marco civil.

— O assunto é muito complexo. Um projeto elaborado pelo Ministério da Justiça está sendo analisado pelo Ministério do Planejamento. Nem chegou ao Congresso ainda porque aguarda definição do governo — explicou Lemos.

Para regulamentar

Neutralidade de rede

Decreto presidencial vai definir exceções à neutralidade da rede, que devem existir somente em dois casos: para priorizar serviços de emergência ou para atender requisitos técnicos indispensáveis.

O decreto será elaborado após consulta ao Comitê Gestor da Internet (CGI) e à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Normalmente, provedores de internet não podem discriminar serviços em detrimento de outros, reduzindo a velocidade de conexão ou cobrando preços diferente.

Dados pessoais

Regras vão garantir a preservação da privacidade, da honra e da imagem do usuário, tal como a confidencialidade das comunicações particulares.

Provedores de internet terão que informar de forma clara medidas de segurança que respeitarão padrões definidos, além de informações sobre o cumprimento das normas.

Mesmo se o provedor estiver fora do Brasil, terá que ser respeitada a lei brasileira quando o usuário estiver em território nacional ou o ato for cometido no país.

Decreto vai definir o procedimento para apurar infrações.

Guarda de registros de conexão e acesso a aplicações

Registros de conexão dos usuários devem ser guardados pelos provedores de acesso durante um ano, sob sigilo e em ambiente controlado de segurança.

Para garantir o anonimato, sem informações sobre o usuário, serão guardadas apenas as horas inicial e final de cada acesso e a identificação do computador (o número IP, de internet protocol).

Anonimato só poderá ser quebrado se houver ordem judicial.

Durante seis meses, os provedores deverão guardar, também sob sigilo e em ambiente controlado de segurança, os registros de acesso a aplicações — se o usuário usou navegador, Skype, WhatsApp ou outro aplicativo.

Os prazos poderão ser estendidos mediante requerimento de autoridade policial ou administrativa ou do Ministério Público.

Saiba mais

Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet)

Estudo da Consultoria do Senado

Programa de rádio Café com a Presidenta (28/4) – arquivo mp3 para download

Bate-papo ao vivo (hoje às 15h) com Paulo Rená, gestor do processo de elaboração coletiva do marco civil

Acesse no site de origem: Marco Civil da Internet aguarda a voz da sociedade (Jornal do Senado, 06/05/2014)

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