(Folha de S.Paulo, 17/05/2014) A violência contra a mulher é tão velha quanto Deus, ou ao menos tão velha quanto o homem, que a pratica, muitas vezes, em nome de Deus. Mesmo assim, não deixamos de nos surpreender com o que está ocorrendo na Nigéria. O rosto aterrorizado de uma das jovens sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram, ao ser obrigada a se dizer convertida, dá uma mostra dessa eterna obsessão por não apenas controlar o corpo das mulheres, mas também os seus corações e suas almas.
Se é verdade que a subordinação das mulheres não se dá de forma igualmente constrangedora em todas as religiões e culturas, impressiona a sua persistência, mesmo nos regimes mais liberais. Apesar dos avanços, das delegacias da Mulher, das presidentas eleitas, das leis Maria da Penha, a violência contra a mulher continua aí, firme e forte. Morre no Brasil, vítima de violência, uma mulher a cada hora e meia. São 15 ao dia e mais de 5.000 ao ano. Isso nos coloca em sétimo lugar no ranking dos países que mais matam mulheres no mundo, na frente de muitas nações muçulmanas, inclusive o Iraque. Calcula-se que quase metade dessas mulheres seja morta por maridos e companheiros. A violência contra a mulher, embora não tenha classe ou raça, parece recair de forma mais contundente sobre mulheres negras. Pelo menos é o que indicam os atendimentos no SUS.
Nesse contexto, é extremamente animador que o Geledés, Instituto da Mulher Negra, tenha sido o principal vencedor do Desafio Impacto Social Google Brasil, com um projeto voltado ao combate à violência contra a mulher, chamado Promotoras Legais Populares 2.0 (PLP 2.0). O objetivo é lançar um aplicativo que permitirá a instantânea denúncia e documentação de atos de violência contra a mulher e seu imediato encaminhamento às esferas de proteção e aplicação da lei. Desta maneira, juntou-se novas tecnologias de informação a uma já premiada tecnologia social criada pela ONG Themis, nos anos 90, que foi responsável pela formação de milhares de PLPs em todo o Brasil, com forte impacto na redução da violência contra a mulher nas comunidades onde o programa foi implantado.
O que levou os mais de 470 mil eleitores do prêmio a escolherem uma vetusta organização de mulheres negras, com tantos projetos super modernos concorrendo? A primeira hipótese, paradoxalmente, é a idade dos eleitores. Para as novas gerações, como a própria polêmica pesquisa do Ipea indica, a violência de gênero é menos tolerável. As filhas das feministas não precisam ser feministas para repudiarem a subordinação e a violência. Isto é: estamos avançando. Uma segunda hipótese pode estar relacionada ao fato de que, mesmo em tempos de civismo cibernético, a velha sociedade civil, forjada na construção de discursos emancipatórios, continua indispensável. As eficientes ferramentas comunicacionais, que a todos encantaram na Primavera Árabe ou nas jornadas de junho de 2013, não dispensam a existência de visões suficientemente estruturadas de mundo, sob o risco de se tornarem birutas de aeroporto.
A associação entre novas tecnologias de comunicação e o velho discurso dos direitos humanos pode ser promissora na construção de uma sociedade menos bárbara. Quem sabe até impedindo linchamentos.
Acesse o PDF: Promotoras Legais Populares 2.0, por Oscar Vilhena Vieira