(RepórterUNESP, 20/05/2014) O trecho acima aparenta ser ficcional, mas diz respeito ao abuso sofrido por uma colega da prostituta Ana Paula, a Paulinha, de Ribeirão Preto – SP. Experiências como essa são realidade na vida de muitas mulheres brasileiras, inclusive as garotas de programa. A violência contra mulheres e prostitutas é, muitas vezes, invisível. De acordo com a psicóloga social Mariana Hasse, a dificuldade de as vítimas entenderem que ser obrigada a fazer sexo, mesmo que com o parceiro, é estupro, está vinculada à ideia de que o sexo é obrigação da mulher. ”De uma forma geral, há um desdém com a violência que é ‘mais leve’. Há uma banalização dessa violência. E, com as prostitutas, isso é um pouco mais acentuado: ‘como você sofreu violência se o cliente estava pagando?’”, explica.
O fato de a sociedade fechar os olhos para a violência sofrida por profissionais do sexo está atrelado à repressão do comportamento feminino. Fabiana Rodrigues, professora do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), estudou como as mulheres se educam na prática da prostituição. Segundo ela, “o estigma da prostituta não recai apenas sobre a mulher que exerce essa função, mas sobre todas as mulheres. Temos medo de sermos taxadas como prostitutas, como se ser prostituta fosse ser menos. Esse estigma é posto para nos controlar, para que continuemos sendo comedidas”, comenta.
No Brasil, a agressão às mulheres, independente da prática profissional, é vista como um problema da Saúde Pública, devido às consequências geradas à vítima. A sanção da Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, criou um mecanismo de combate à violência contra a mulher. “O agressor é, geralmente, parceiro íntimo. As vítimas são mulheres economicamente independentes e costumam ter entre 18 e 49 anos – a faixa etária produtiva”, afirma Hasse. Para os estudiosos no assunto, o abuso tem relação com uma tentativa de controle da mulher por parte dos companheiros. “A violência contra a mulher é decorrente dos padrões tradicionais de gênero e do estabelecimento das relações de poder”, conclui.
De acordo com o Ministério da Saúde, o atendimento às mulheres vítimas de agressão, nos serviços de saúde, deve incluir entrevistas, exames médicos e psicológicos, o uso e acompanhamento de métodos contraceptivos e, nos casos de abusos sexuais seguidos de gravidez, a compreensão da necessidade e do desejo da mulher em interromper ou não a gestação.
De acordo com a pesquisa “Caracterização da violência física sofrida por prostitutas do interior piauiense”, realizada por profissionais da área de enfermagem, há um grande número de registros de agressões a prostitutas. Os dados dizem respeito a apenas uma região, mas refletem a realidade de todo o país. (Arte: Paula Reis)
As recorrentes práticas violentas contra prostitutas motivou as profissionais a alterar o seu horário de trabalho para o período diurno. Além das novas jornadas, as mulheres passaram a ficar mais atentas às placas dos veículos, como forma de identificar os agressores. “Foram muitos estupros, assaltos, espancamentos. Então desenvolvemos um método para tentar reduzir essa violência. De fato, conseguimos minimizar um pouco, porque até então todo mundo era puta e não tinha direito a nada”, conta a garota de programa Paulinha.
Prostituição e segurança pública
“A gente sofria muito com a violência policial. Eu sempre consegui correr, sempre dei sorte. Nunca apanhei, mas já vi muitas amigas apanharem. Tínhamos um delegado que costumava fechar as duas ruas onde era localizado o bar em que trabalhávamos, e quem estivesse ali ia para a viatura ou dentro de camburões. E havia muita agressão contra as prostitutas. E nossas queixas da agressividade policial eram frequentes – aquela eloquência toda deles de ficarem pressionando para tirar a gente dali e acabar com a prostituição”, relata Paulinha.
Mariana Hasse aponta que a maioria das garotas de programa, em vez de dirigirem-se à Delegacia da Mulher – que funciona apenas em horário comercial -, procuram delegacias comuns para registrar boletins de ocorrência, já que a maioria dos casos ocorrem em outros períodos. “Elas são, muitas vezes, atendidas por homens. Então, o relato que temos é de que eles não conseguem entender como uma prostituta pode sofrer violência sexual”, afirma.
É nesse contexto que surge, em 1998, a ONG Vitória Régia, de Ribeirão Preto, que promove a sensibilização da Polícia Militar e Civil diante da prostituição. No mesmo ano em que a instituição foi fundada, a prostituta Selma Heloísa Artigas, conhecida como Nicole, foi arrastada por 16 km pelas ruas da cidade. A vítima, na época com 22 anos, não sobreviveu. O empresário Pablo Russel Rocha, autor do crime, ainda está sob julgamento.
A ONG Vitória Régia defende os interesses das profissionais do sexo por meio da promoção da cidadania e de atividades de cunho educacional e social. Nesse sentido, são organizadas palestras para reforçar os direitos e deveres das prostitutas, bem como o papel da segurança pública. “Prostitutas merecem respeito e têm voz própria”, afirma a assistente social da ONG, Regina Brito.
Atualmente, além de casos de violência contra as prostitutas, a ONG estimula a conscientização dessas profissionais e de toda a sociedade. Entre os serviços oferecidos pela instituição estão a entrega monitorada de preservativos e gel íntimo, oficinas de sexo seguro e de cidadania, encaminhamento social, psicológico e jurídico e a promoção de ações de saúde e educação. “Eram as próprias prostitutas que desenvolviam as palestras, montavam as aulas e passavam com muita propriedade o que é importante para a categoria. Independente da profissão, todos temos direito à cidadania”, reforça Regina Brito.
Submissão do feminino ao masculino
Fabiana Rodrigues defende que as práticas violentas contra as mulheres – concebidas como gênero de construção social, ou seja, independente de condições biológicas – são frutos do reforço de modelos, práticas sociais e instituições que estereotipam a figura da mulher. Na palestra Mulher e a Abolição Inacabada: exploração sexual, prostituição e racismo, a professora e a historiadora Cidinha da Silva abordam as relações que moldam a representação da mulher na sociedade.
“As mulheres são, de certa forma, educadas para agradar ao outro – ao homem principalmente. E esse tipo de educação vai fazendo com que as mulheres renunciem à autonomia”, comenta Fabiana a respeito da educação sexista que impõe a passividade à mulher e a atividade ao homem.
A representação do feminino geralmente é vista pela ótica do outro e, muitas vezes, como desejo sexual masculino. Fabiana defende que, quando se rompe com essa premissa e a mulher deseja sentir prazer, é que surge o problema. “A mulher que quer ter prazer é taxada como prostituta, ou como dotada de sexualidade descontrolada, primitiva, selvagem. Essa é a visão de muitos sobre a mulher brasileira”, denuncia. “Corpos silenciados”, termo utilizado por Fabiana, é segundo ela a base da violência contra a mulher: o feminino estereotipado e calado. Ao atingir sua independência, as mulheres rompem as barreiras sociais que lhes foram impostas.
Reportagem: Nayara Kobori
Produção: Paula Reis
Edição: Amanda Lima
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