(O Globo, 14/06/2014) Duília de Mello trabalha há 11 anos na Nasa como analista de imagens do telescópio Hubble
Astrofísica da Nasa, pesquisadora do Goddard Space Flight Center e especialista na análise de imagens do telescópio Hubble. Duília de Mello, de 50 anos, foi a grande vencedora do prêmio Diáspora Brasil, concedido aos cientistas que se destacam no exterior. A vitória de Duília numa área quase que inteiramente dominada por homens reabre o debate sobre a participação das mulheres na ciência e a exploração dos estereótipos de gênero desde a mais tenra infância. Afinal, depois de tantos avanços, por que a área de exatas continua sendo a última fronteira das conquistas femininas?
— Ainda são poucas as mulheres na ciência, e ainda há preconceito — resume Duília. — A tendência é diminuir, espero.
Metade das bolsas já é dada a elas
Economista das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e Fluminense (UFF), dedicada a questões de gênero, Hildete Pereira de Mello (que não é parente de Duília) está fazendo um levantamento sobre o tema, com base nas bolsas de iniciação científica concedidas pelo CNPq. De fato, a participação das mulheres está aumentando, mas a passos muito lentos. Atualmente, metade das bolsas está nas mãos de mulheres — contra 30% no fim dos anos 90. Entretanto, entre os detentores das bolsas sêniores, apenas 23,5% são do sexo feminino (eram 17% em 1999).
Ainda assim, Duília conseguiu se tornar uma “astrofísica extragaláctica”, como está assinalado no prêmio, e trabalhar na Nasa. Nada mal para uma mulher nascida nos anos 60 em Jundiaí, no interior de São Paulo, que passou a infância no subúrbio carioca de Brás de Pina.
— Sempre fui apaixonada pelo Universo e, desde pequena, queria entender como ele funcionava tão bem sendo tão complexo — contou numa entrevista. — No fim dos anos 1970 eu vivia vidrada nas descobertas das naves espaciais da Nasa, Pioneer 10 e 11, que estavam visitando Júpiter e Saturno. Naquela época não tínhamos internet, e o acesso à informação era bem restrito, principalmente para quem era de classe média baixa, como nós.
No entanto, Duília trabalha há onze anos na Nasa, foi responsável pela descoberta da supernova SN 1997D e participou também da descoberta das chamadas bolhas azuis — as estrelas órfãs, sem galáxias.
— Em 2008, detectamos umas bolhas azuis, estrelas solitárias que vivem entre as galáxias, formadas fora das galáxias. Tanto podem ser pequenos aglomerados de estrelas como galáxias anãs, que podem acabar engolidas pelas galáxias vizinhas. Enfim, é um mecanismo interessante de pensar a evolução das galáxias — Duília explica.
A despeito das dificuldades, ela teve o que muitas meninas não têm: a liberdade de sonhar poder ser qualquer coisa, de não ser levada a reproduzir estereótipos de gênero. Não é simples como parece.
— Os brinquedos que ainda hoje damos às crianças são uma forma de manter a organização da família da mesma forma como ela está construída há séculos — explica Hildete. — A princesa remete à ideia do príncipe encantado, do casamento como o grande upgrade da vida. A boneca é a forma de domesticar a mulher para o cuidado. Para os meninos, damos canhões, automóveis, aviões. Ou seja, são formas de socializar os bebês para os papéis sociais referidos que eles deverão cumprir.
Além disso, há a questão da maternidade e da criação dos filhos.
— Os homens não dividem os encargos da maternidade até hoje — constata Hildete. — E, ainda que elas possam pagar por creches, socialmente têm uma dificuldade muito grande. O reconhecimento social da mulher passa pela maternidade. E isso não é só no Brasil, é um problema recorrente no mundo todo.
Diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vencedora do Prêmio Loreal/Unesco ano passado, Márcia Cristina Bernardes Barbosa, de 54 anos, constatou isso ao participar de um projeto sobre a questão de gênero organizado pela União Internacional de Ciências, que contou com grupos de trabalho em 75 países.
— O problema é comum às mais diferentes culturas — diz. — E tem a ver com algumas características da carreira. Por exemplo, há uma demanda grande por viajar, e as mulheres são as responsáveis por cuidar dos filhos, dos idosos, da casa. Outra característica importante é que é preciso ser agressivo. Por último, são carreiras que demandam avaliação constante, exigem um número de publicações. É óbvio que quando elas têm filhos não conseguem a mesma produtividade.
A genética em questão
A questão é tão recorrente que se chegou a cogitar se haveria alguma explicação genética para a uma suposta “aversão” das mulheres a área de exatas.
A melhor resposta para isso veio de um homem, o astrofísico Neil deGrasse Tyson, num vídeo que faz sucesso nas redes sociais: “Eu nunca fui mulher, mas fui negro a minha vida toda”, disse ele. “Mas há similaridades na questão do acesso a oportunidades para negros e mulheres numa sociedade dominada por homens brancos.”
“Eu queria ser astrofísico desde os 9 anos. E via como o mundo ao redor reagia quando eu expressava essa ambição. Os professores retrucavam: mas você não quer ser atleta, não quer ser outra coisa? Eu queria algo que estava fora do paradigma das expectativas daqueles que estavam no poder. As forças da sociedade agem. Então, se não temos muitos negros na ciência, sei que é porque essas forças são reais e tive que superá-las para estar aqui. Portanto, antes de começarmos a falar sobre diferenças genéticas entre homens e mulheres, temos de encontrar um sistema de oportunidades iguais. Aí, sim, poderemos ter essa conversa.”
Roberta Jansen
Acesse em pdf: Astrofísica brasileira ganha prêmio e reabre discussão sobre mulheres na ciência (O Globo, 14/06/2014)