(Revista Reprodução e Climatério) Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) foram estabelecidos em 2000 pela Declaração do Milênio da Organização das Nações Unidas (ONU). O documento, adotado por 191 Estados-membros, busca sintetizar os vários acordos firmados nas cúpulas mundiais, principalmente ao longo dos anos 1990, como a Rio-92. A Declaração do Milênio estabelece compromissos concretos que, cumpridos nos prazos planejados, levariam a uma significativa melhoria na qualidade de vida da humanidade até 2015. São oito objetivos, que incorporam 22 metas e 48 indicadores, os quais podem ser acompanhados, comparados e avaliados. Esses referenciais devem ser acessíveis às populações, que têm o direito de monitorar sua evolução e de exigir de seus representantes o cumprimento dos resultados.
De fato, os ODM despertam a necessidade de enfrentar e, se possível, erradicar algumas históricas mazelas sociais: a pobreza extrema, a fome, a falta de acesso à educação de qualidade, a iniquidade de gênero, as doenças e mortes evitáveis, a exploração predatória do ambiente, a precariedade das condições de vida. Nesse sentido, o quinto ODM trata especificamente das condições de saúde das gestantes, com duas metas para serem atingidas no próximo ano: a redução da mortalidade materna em três quartos do nível observado em 1990 e a universalização do acesso à saúde sexual e reprodutiva.
A preocupação da ONU ao estabelecer o quinto ODM procede e merece atenção. Os dados indicam que a atual razão de mortalidade materna nos países em desenvolvimento é de 230 por 100 mil nascidos vivos, enquanto que nos países desenvolvidos a média é de 16 por 100 mil. Essa proporção 14,3 vezes maior, mais do que perversa, desvela uma grave fissura social nos países em desenvolvimento: quase 99% das mortes maternas ocorrem nesses países e atingem, principalmente, mulheres pobres e vulneráveis. Não há como obscurecer uma vergonhosa situação de iniquidade no acesso aos serviços qualificados de saúde reprodutiva para as gestantes que deles mais necessitam.
A maioria dessas mortes maternas decorre de complicações que se estabelecem durante a gestação. Cerca de 80% dos casos envolvem hemorragias graves, infecções, hipertensão gestacional e abortamentos inseguros. A Organização Mundial da Saúde (OMS) assegura que parte expressiva dessas mortes é evitável, considerando-se que os meios necessários para prevenir e tratar essas complicações são bem conhecidos.
Em síntese, todas as mulheres necessitam de acesso à assistência pré-natal de qualidade, atenção ao parto em condições seguras e cuidados apropriados depois dele. Contudo, a OMS adverte que os principais fatores que obstaculizam a assistência adequada para mulheres durante a gestação e o parto ainda são a pobreza, a distância dos serviços de saúde, a falta de informação, a escassez de serviços de saúde adequados e, em alguns países, antigas práticas culturais.
Como resultado, morrem 800 mulheres no mundo a cada dia por complicações evitáveis relacionadas com a gestação, o parto e o puerpério. Mas os esforços para reduzir esse número no mundo devem ser ressaltados. Desde 1990, vários paísesafricanos reduziram as taxas de mortalidade materna quase àmetade. Na América Latina a queda foi de 45%: passou-se de 130 para 72 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos. Mesmo assim, a razão de mortalidade materna vem sendo reduzida no ritmo de apenas 2,6% ao ano, quando o necessário seria d e 5,5% para alcançar o quinto OMD. É dado como certo que grande parte dos países em desenvolvimento não conseguirá atingir a primeira meta.
O Brasil também mostra avanços no enfrentamento da mortalidade materna. Os 141 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos em 1990 foram reduzidos para 64,8 por 100 mil em 2011. A variação nesse período se deve, principalmente, à queda de 67% dos óbitos maternos por causas diretas, de 126 para 43 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos. Esse declínio anual de 5,1% é o mais promissor e próximo do necessário.
Contudo, é seguro que a meta de reduzir a razão de mortalidade materna não será alcançada pelo Brasil em 2015. Os índices divulgados pela OMS, em 2013, mostram que no país ainda ocorrem 68,2 óbitos por 100 mil nascidos vivos, pouco menos do que o dobro da meta estabelecida pela ONU, de 35 óbitos por 100 mil.A segunda meta também não será atingida, embora esteja mais próxima. Em 2011, 99% dos partos foram assistidos em estabelecimentos de saúde e quase 90% das gestantes concluíram quatro ou mais consultas pré–natais. Esse indicador está mais distante dos países em desenvolvimento, com 66% dos partos assistidos adequadamente e 51% das gestantes recebendo o número mínimo de consultas pré-natais.
O insucesso brasileiro em relação ao óbito materno contrastacom o cumprimento dos outros sete ODM. Essecontraste é ainda maior quando se analisam as justificativase os argumentos para não se ter alcançado o objetivo.A publicação do governo federal Objetivos de Desenvolvimentodo Milênio: Relatório Nacional de Acompanhamento, lançada em2014,preocupa-se notadamente em valorar os avanços emrelação a 1990, bem como em destacar uma situação maisfavorável do que a média dos países em desenvolvimento,inclusive os da América Latina.
O referencial do governo brasileiro quanto à morte materna parece mais vinculado à lógica secular dos países em desenvolvimento e de suas trágicas estimativas e menos voltado para incorporar as lições exitosas e os modelos bem-sucedidos dos países desenvolvidos, que adotam a perspectiva de respeito aos direitos humanos e reprodutivos das mulheres. Repete-se, portanto, a desigualdade social e econômica como fator preponderante no óbito materno: mulheres negras e pobres, em plena idade reprodutiva, ainda são as que mais morrem no Brasil, principalmente das regiões menos favorecidas.
Contudo, explicar as dificuldades de reduzir a mortalidade materna no Brasil não pode ser minimizado apenas pela perspectiva econômica regional, ainda que seja um fato. Dados do Ministério da Saúde indicam que a razão de mortalidade materna no Estado de São Paulo foi de 40,8 por 100 mil nascidos vivos em 2011. Embora menor do que a média nacional, de 64,8 por 100 mil, no mesmo ano, a situação de São Paulo também supera os 35 óbitos por 100 mil desejados. Além disso, observa-se agravo injustificável dos números em relação a 2003, quando foram registrados 32,4 óbitos por 100 mil. Ainda no Sudeste brasileiro, o Estado do Rio apresentou razão de mortalidade materna de 74,3 por 100 mil, consideravelmente acima da média nacional. Por outro lado, Santa Catarina reduziu a morte materna para 25,2 por 100 mil, índice que atende à meta do quinto ODM.
A publicação Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Relatório Nacional de Acompanhamento também mostra poucadisposição de expor claramente as dificuldades que persistemno país para reduzir a morte materna e retém-se em generalidades.Entre as poucas explicações, alega-se como fatorimportante no óbito materno o crescimento do nascimentopor cesárea, o qual saltou de 41% dos partos em 1996 paraquase 54% em 2011.Não cabe contestar a extravagância dessesnúmeros comparados com os dos países desenvolvidos,nem seus efeitos maternos e perinatais. Mas é incompreensívelque graves questões de saúde pública, a exemplo do abortamento inseguro, sequer sejam lembradas nesse documento.
A interrupção da gravidez em condições clandestinas é a quarta causa de mortalidade materna no país. O abortamento é a primeira causa de óbito materno em Salvador desde 1990 e a terceira em São Paulo. Mais uma vez, mulheres negras têm maior risco de morrer do que as brancas, por serem mais pobres e por enfrentarem maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde de qualidade. O problema pode ser ainda maior se admitirmos que entre as mortes maternas por causas obstétricas diretas, as relacionadas com complicações do abortamento são reconhecidamente subnotificadas, por razões culturais e consequências legais.
A relação entre o abortamento inseguro e a mortalidade materna é contundente nos países em desenvolvimento.Na América Latina e no Caribe, morrem 30 mulheres a cada 100 mil interrupções da gestação e na Ásia 160 a cada 100 mil. Mas o impacto é desproporcionalmente maior nos países africanos, onde a taxa média de letalidade do abortamento inseguro é de 460 por 100 mil procedimentos. Nos países subsaarianos ela é ainda maior e atinge 520 óbitos por 100 mil.Em contraste, nos países em que o abortamento induzido é feito em condições legais e seguras, a letalidade é de 0,7 por 100 mil interrupções, diferença até 742,8 vezes menor.
Embora o abortamento inseguro seja apenas um dos fatores que pesam sobremaneira na mortalidade materna no Brasil, a diferença em relação às práticas seguras nos países desenvolvidos legitima a OMS considerar esses óbitos como aqueles com o maior potencial de serem evitados. Mesmo assim, a prestação de contas da autoridade brasileira omite a questão do abortamento, possivelmente por temer críticas e represálias políticas das bancadas religiosas no Congresso Nacional, sempre indiferentes às mortes dessas mulheres. Com a mesma precaução, a Rede Cegonha, lançada em 2011 com objetivo de reduzir a mortalidade materna e perinatal, também não torna explícita qual a sua política pública frente ao abortamento.
As políticas públicas em relação à mortalidade materna no Brasil são insuficientes e falhas para responder ao problema. Mahmoud Fathala, ex-presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo), assinala que “as mulheres não estão morrendo por doenças sem tratamento, mas sim porque sociedades inteiras ainda estão decidindo se a vida dessas mulheres merece ser salva”. É preciso reconhecer na mortalidade materna um drama violento, evitável, inaceitável. E, ao mesmo tempo, um indicador sensível do respeito que uma nação tem pela saúde e pelos direitos humanos e reprodutivos das mulheres. Diferentemente do que apregoava Martinho Lutero, no século XVI, ao se referir ao óbito materno: “Elas que fiquem parindo filhos até morrer por isso (…). É para isso que as mulheres existem.”
Jefferson Drezett: Editor da Revista Reprodução & Climatério e Coordenador do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo