Casal gay ganha na Justiça direito a licença do trabalho após adotar quatro crianças

03 de setembro, 2014

(O Globo, 03/09/2014) Nos últimos dias, Rogério Koscheck tem começado a se acostumar com a rotina de fraldas, choros, noites em claro, deveres de casa e até resfriados em família. Ele ficará em casa por três meses para cuidar dos quatro filhos recém-adotados, enquanto seu companheiro, Weykman Padinho, continuará trabalhando. A licença de adoção só foi garantida, entretanto, depois de uma decisão judicial. Há quase um ano, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei 12.873, que ampliou o direito de licença também aos pais, o que acabou abarcando os casais homossexuais. Mas, na prática, ainda está difícil para eles passar algum tempo com as novas crias, especialmente se forem servidores públicos.

— Já queríamos pelo menos duas crianças. Depois fomos pensando: “por que não três?”, “por que não crianças mais velhas?” Acabamos entrando em contato com grupos que pregavam a adoção de pessoas com problemas de saúde e fomos nos comovendo. Mas a decisão veio quando os conhecemos de fato, daí não tivemos dúvida — lembra Koscheck sobre o processo que começou em janeiro de 2013 para a adoção de quatro irmãos, com idades entre 7 meses e 11 anos; três deles, com HIV.

Koscheck admite que a logística não tem sido fácil e requer tempo integral de cuidados. Mas nada que seja muito diferente da que cerca a chegada de uma nova criança à família.

— Para se ter ideia, todo mundo pegou a última gripe; a planilha de horários da geladeira só cresce; um chora, e o outro pede ajuda para o dever ao mesmo tempo — diverte-se.

Auditor da Receita Federal, Koscheck chegou a iniciar um processo administrativo no próprio órgão, que lhe negou o direito. Com isso, entrou com um mandado de segurança, e o pedido foi, então, acatado pelo juiz. A justificativa da Receita para ter decidido recusar o pedido é que o órgão se baseia no Estatuto do Servidor Público, uma lei de 1990 (nº 8.112). O argumento, no entanto, é questionado pela advogada Maria Berenice Dias, presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB.

— Se a presidente aprovou uma lei federal, ela naturalmente deveria se refletir em toda a legislação, já poderia ser aplicada em todos os casos — explica Berenice, lembrando que até no setor privado casais gays têm enfrentado dificuldade para tirar a licença. — É um intervencionismo exacerbado o Estado querer dizer quem vai cuidar do filho… Isso quer dizer que não pode ficar com o pai.

Edilson Gondra está em situação semelhante. Também funcionário da Receita Federal, ele teve o pedido inicial negado. Entrou na Justiça, mas seu processo levou seis meses até que ele conseguisse o direito a um mês de licença, que ainda não começou a valer.

— Existem os estatutos do funcionário público federal, estadual, municipal… Cada um tem suas diretrizes. Acredito que estejam em vias de modificação, porque o que está acontecendo é uma avalanche de decisões judiciais — analisa Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direitos de Família.

Finalmente, Gondra poderá cuidar mais de perto dos dois filhos adotados este ano: Caíque, de 6 anos, e o outro (cujo nome ainda não pode ser divulgado por conta do processo em tramitação), de 5 anos.

— Por enquanto, estão com a babá. Mas principalmente o Caíque precisa de uma atenção especial neste momento — comenta Gondra, que exemplifica: — Ele viu os colegas sendo adotados e foi ficando… Tem um marca de queimadura no braço, é um menino negro e tinha um comportamento agressivo, que está mudando aos poucos. Esse geralmente não é o perfil mais escolhido pelos pais adotivos.

Apesar dos novos desafios, Gondra e Bruno Elias, que vivem juntos há dez anos, dizem estar “realizados”:

— Eles estão superbem, já se veem como irmãos. E até a questão da dupla paternidade foi mais simples do que imaginávamos.

Mas ativistas denunciam que a licença de adoção é apenas um dos muitos conflitos que existem quando o assunto são os direitos LGBT, tema que tem sido foco, também, dos debates eleitorais. Para a adoção, por exemplo, não existem leis específicas contemplando os casais do mesmo sexo. Na prática, decisões judiciais individuais vão abrindo portas para outras pessoas buscarem o mesmo direito, o que ocorre desde 2005, quando foi aprovada a primeira adoção por um casal homossexual no Brasil.

SEM LEIS, JUDICIÁRIO ABRE PRECEDENTES

— A Justiça precisa suprir as omissões dos legisladores do Congresso Nacional — critica o advogado Carlos Alexandre Neves Lima, assessor jurídico da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual no Rio. — Não há nenhuma lei específica para o LGBT, nada passa no Congresso. A única que conheço é a Lei Maria da Penha, que inclui mulheres lésbicas.

O casamento gay é outro exemplo. O Supremo Tribunal Federal reconhece, desde 2011, as uniões estáveis de casais homossexuais, e o Conselho Nacional de Justiça obriga, desde o ano passado, cartórios a converterem uniões estáveis em casamentos civis. Essas e outras decisões, no entanto, não têm o mesmo peso de uma lei.

— É algo frágil, que pode cair se uma lei mais conservadora for aprovada — explica Berenice, que, por isso, defende o Estatuto da Diversidade Sexual, uma petição que está na internet (estatutodiversidadesexual.com.br) e precisa de mais de um milhão de assinaturas para ir ao Congresso.

Flávia Milhorance

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