(Tribuna Hoje, 05/10/2014) Respondendo por uma fatia pequena entre as mais de 25 mil candidaturas aos Legislativos federal e estaduais em todo o País, candidatos transgêneros disputam votos nas eleições deste ano, mas não sem enfrentar problemas relacionados a sua identidade sexual. Entre os obstáculos para viabilizar a candidatura, eles apontam o preconceito, a resistência da classe política e dificuldades de ordem burocrática.
Os partidos aos quais eles se filiaram são diversos, assim como os seus estados de origem Mas, no plano nacional, as candidaturas de transgêneros têm pouca articulação e os obstáculos se repetem.
Quem ultrapassa os obstáculos e consegue tirar a candidatura do papel ainda enfrenta outro obstáculos, como constrangimento de se apresentar no registro eleitoral com o sexo oposto ao que se indetificam socialmente, por exemplo. Isso em decorrência da dificuldade vivida pelas pessoas trans para terem seus registros civis alterados pelo poder público.
Esse fator, aliás, foi fundamental para que a advogada Luisa Stern (PT-RS) esperasse até os 48 anos para se candidatar pela primeira vez, apesar de ser engajada em movimentos sociais e na luta por direitos humanos desde o movimento estudantil. “Se, no registro, meu nome completo aparecesse como masculino, tenho certeza de que não enfrentaria essa exposição”, reconhece Luisa, que, ao contrário de outros candidatos, diz ter recebido bastante apoio partidário.
“Fui convidada a me candidatar exatamente por ser transexual e tenho incentivo político da (ex-ministra de Direitos Humanos e deputada federal) Maria do Rosário (PT-RS). Ela que me convidou também para a corrente Movimento PT, que tem uma vinculação muito forte com o movimento LGBT.” Além de Luisa, o PT também conta com a candidatura a deputada estadual da transexual Pâmela Maranhão (PT-MA), que, entretanto, ainda aparece com o registro masculino.
Luisa é uma das raras candidatas transexuais a fazer parte da cota feminina, o que foi possível após ter sua identidade feminina reconhecida pelo Estado no ano passado, na mesma época em que realizou uma cirurgia como parte de sua transição no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, pelo Sistema Único de Saúde.
Filiada ao Partido dos Trabalhadores desde a adolescência e militante do movimento Igualdade RS – Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, a advogada lamenta o baixo número de mulheres dispostas a se candidatarem, apesar das cotas partidárias. Mais importante até do que se eleger como a “primeira deputada transexual do Brasil”, porém, Luisa acredita que ser candidata já contribui por si só. “Aparecer na mídia, estar no horário eleitoral, panfletar nas ruas, já é um avanço. Quando forem falar sobre o assunto, nós seremos a referência”.
Apesar de ser reconhecida como mulher em sua carteira de identidade desde 2007, a promotora cultural Renata Tenório (PSB-RJ) enfrentou dificuldades na Justiça Eleitoral, neste ano. Inicialmente, o Ministério Público Eleitoral havia argumentado que o PSB não teria cumprido a cota feminina, mas uma decisão da juíza Ana Tereza Basílio, inédita na Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro, garantiu o direito de pessoas trans se registrarem de acordo com o gênero já reconhecido pelo próprio Judiciário. Para que isso ocorresse, no entanto, Renata teve de reunir o depoimento de seu terapeuta e de seu cirurgião, além das decisões judiciais anteriores.
“Tive de correr atrás da minha dignidade, como sempre fiz. Não foram o SUS, nem ONG, nem apresentador de televisão que me deram minha cirurgia. Eu tive de pagar tudo com meu trabalho”, diz a candidata a deputada federal.
Uma mistura de problemas familiares e conflitos com o partido, porém, fez com que a moradora de Duque de Caxias desistisse temporariamente da campanha, para retomar a candidatura só na reta final. “Eu sou do partido mais complicado, que é o da Marina Silva. Mas, o que me magoa, é que no PSB e para os candidatos que realmente podem ganhar as eleições deste ano, eu sou a mulher invisível”, lamenta a candidata, que chegou a receber charges onde foi apelidada de “Renata Piovani, a mulher invisível”, em referência ao filme brasileiro realizado em 2009, com a atriz Luana Piovani.
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“O PSB é um partido que ainda precisa se organizar. Daqui pra frente, não sei como vai ficar minha situação, porque a qualquer momento posso mudar de partido”, afirma Renata, que enxerga no PSOL uma outra possibilidade de filiação, especialmente a partir da convivência com o deputado federal e candidato à reeleição Jean Wyllys (PSOL-RJ), assumidamente gay e autor do projeto de lei João Nery, que garante o direito ao reconhecimento da identidade de gênero de cada pessoa.
Apesar de relativamente pequeno, aliás, o PSOL é um dos partidos que proporcionalmente mais reúne candidaturas de transgêneros. Pela sigla, disputam as eleições a psicóloga Letícia Lanz (PSOL-PR) e a cabeleireira Melissa Campus (PSOL-PR), como candidatas a deputadas federais, além da jornalista Monique Top (PSOL-SP), candidata a deputada estadual.
Dificuldades
Apesar da disposição, muitos dos que se interessam por entrar na política não chegam a disputar as eleições. É o que ocorre, neste ano, com o filósofo e conselheiro municipal de saúde Raicarlos Coelho Durans (PPS-PA) e a auxiliar de enfermagem Thifany Félix (PSB-SP). Pela segunda vez, os dois ficarão de fora do pleito. Em 2012, Durans e Thifany pretendiam disputar cadeiras nas Câmaras Municipais de Marituba (PA) e Ubatuba (SP), respectivamente, mas não conseguiram a legenda para concorrer.
Em 2012, Durans diz ter descoberto apenas no momento do registro que não havia sido filiado pelo PPS, embora tenha apresentado toda a documentação para integrar os quadros do partido. Ele acusa o comando partidário de barrá-lo. “Os caciques do partido não queriam que eu fosse candidato. E olha que eu só tenho três coisas: vontade, meu direito e meu próprio voto. Mas isso foi o suficiente para muita gente achar que eu poderia comprometer a eleição de pessoas mais cacifadas”, critica.
Já neste ano, Durans, que tentava se tornar o único homem transexual a disputar as eleições, diz que o partido tinha outros planos – inclusive para eleger a candidata a deputada federal e também transexual Bruna Lorrane (SDD-PA), da mesma coligação. De acordo com ele, “a conjuntura inibe ainda mais a participação de homens trans – que fizeram a transição do gênero feminino para o masculino – pois as mulheres trans estão na estrada a mais de 25 anos no país, enquanto os homens trans só começaram a aparecer muito mais tarde, como o João Nery, que só apareceu pra gente depois dos 60 anos e foi o primeiro homem transexual a se operar aqui no Brasil”.
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Apesar disso, o paraense não se deixa abalar e garante que em 2016 estará na disputa – só que por outro partido. Entre as possibilidades ventiladas por ele estão o Solidariedade e o Partido dos Trabalhadores. “Não acredito mais em candidaturas ideológicas. Acredito em outras questões, como fortalecer direitos e a cidadania LGBT”, diz o filósofo, que começou a militância partidária no PCdoB. “Antigamente, eu achava que éramos vítimas, mas hoje não. Tem um viés fundamentalista, mas não é só isso. Algumas pessoas no Parlamento nos defendem, mas não é a mesma coisa. Só temos um representante nosso mesmo, que é o Jean Wyllys, e que deve continuar sendo o único. É um enigma: por que não votamos em nós mesmos?”
O coordenador nacional do PPS de combate à homotransfobia, Eliseu Neto (PPS-RJ), lamenta a situação e afirma que só soube das dificuldades de Durans ao ser procurado pela reportagem do iG. “É uma pena. O núcleo tem apenas dois anos e ainda não conseguimos mapear todos nossos militantes LGBTs do partido no Brasil. Mas, se ele tivesse nos procurado, certamente teria nosso apoio e, caso ainda pretenda se candidatar em 2016, espero que busque a gente”, explica Neto, que pretende levar o caso à direção nacional do partido.
Nestas eleições, Neto não sabe dizer quantas pessoas LGBTs concorrem pelo PPS, mas afirma que todas as candidaturas são comprometidas com a pauta. “Nós estamos processando o Congresso Nacional por omissão no combate à homofobia, por não ter votado o PLC 122. Além disso, junto com o PSOL, somos considerados um dos partidos que mais atuam em defesa da diversidade”, ressalta Neto. “Nós chegamos a iniciar um mapeamento das nossas candidaturas LGBTs, mas como estamos tendo um trabalho muito grande com a campanha da Marina, tivemos de parar”, explica o coordenador, que é assumidamente homossexual e pretende disputar as eleições para deputado federal em 2018.
No litoral de São Paulo, Thifany diz ter sido alvo de discriminação. Ao tentar se candidatar a vereadora, em 2012, ela não foi homologada pela convenção municipal do Partido dos Trabalhadores, ao qual era filiada. “Foi puro preconceito. Na época, tive acesso a conversas dos dirigentes do partido e cheguei a prestar queixa no diretório estadual, mas nada foi feito. Dois anos depois, a Márcia Lima – que também é transexual e hoje é candidata a deputada federal – me chamou para o PSB e eu fui”.
A mudança de partido, entretanto, não lhe garantiu a participação na disputa. Apesar de constar na lista encaminhada pelo PSB à Justiça Eleitoral, Thifany descobriu no dia de seu aniversário que sua candidatura havia sido impugnada. “É complicado dizer se é preconceito, boicote político ou falta de organização. Mas, desde que eu me filiei, por exemplo, tenho pedido reuniões com o presidente estadual do partido, Márcio França, e nunca conversamos. De qualquer forma, eles poderiam estar atentos e ter me avisado, antes do prazo para recurso, de que eu seria impugnada”, critica.
Na opinião do secretário nacional LGBT do PSB e ex-coordenador de campanha da presidenciável Marina Silva, Luciano Freitas, o caso de Thifany não deve ser visto como transfobia. “Se houvesse discriminação, ela não teria nem sido homologada na convenção. O PSB tem preconceitos como todos os partidos têm, mas hoje é um partido muito tranquilo com relação a essas candidaturas, até porque sabe que essas pessoas mobilizam votos. É importante separar o que pode ser discriminação com o que faz parte do jogo do poder, que mexe com lideranças e vaidades”, diz Freitas.
O coordenador-geral de Políticas para LGBT da prefeitura de São Paulo, Alessandro Melchior, que integra o núcleo LGBT da campanha da presidente e candidata à reeleição Dilma Rousseff, diz não conhecer o caso específico relatado por Thifany, mas também ressalta a importância de se diferenciar o que pode ser preconceito de disputas políticas comuns aos partidos.
“O que eu posso dizer é que o PT foi o primeiro partido a ter um núcleo LGBT organizado, em 1991, e que é um dos partidos com maior disposição para fazer esse enfrentamento internamente”, afirma Melchior, que cita exemplos como o dos deputados Luiz Bassuma (BA) e Henrique Afonso (AC), que por atuarem contra a legalização do aborto, defendida em resolução do partido, foram suspensos pela direção do PT e em seguida decidiram se desfiliar.
“Agora, como o movimento LGBT ainda é mais recente do que a mobilização de mulheres, negros, estudantes e outros segmentos organizados dentro dos partidos, as relações às vezes são mais frágeis e desorganizadas. Mas sempre que um caso assim chega às instâncias superiores, nós fazemos o acompanhamento para combater qualquer discriminação.”
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