(Correio Braziliense, 21/10/2014) Nós mulheres cuidamos das casas. Das nossas e das das patroas, das nossas e das dos patrões. Mas eu queria dizer aos candidatos à Presidência da República que nós não somos só donas de casa; somos mães, filhas, avós, parentes ou aderentes da vida de outras mulheres e de muitos homens. Também trabalhamos, e muito. Seja naquilo pelo qual o mercado paga salário e nos descreve como consumidoras, seja naquilo que mantém a humanidade viva e recebe o nome de cuidado. É, o trabalho da casa parece só nosso, por isso os candidatos à Presidência da República, quando encaram as câmeras e falam para as mulheres, insistem em nos chamar de “donas de casa”. Gosto muito de ser dona de casa, mas queria explicar aos candidatos alguns sentidos da casa.
Não sei em qual casa os candidatos pensam quando explicam economia e inflação para nós, as donas de casa. Eles adoram citar números, em geral, bilhões, e nos explicam que a política econômica de seus governos vai nos deixar melhores consumidoras. Discutem ovo ou carne para o cardápio como resultado do PIB que cresce ou diminui. Dizem ainda que muitas de nós não somos mais pobres, mas classe média, e que a pobreza extrema desapareceu do Nordeste. Não queria falar de inflação nem de cozinha – uma dona de casa não é especialista em economia ou gastronomia, tarefas masculinas, não é verdade? Vejam os ministros da Economia e os novos chefs de restaurantes. Todos homens. Só queria dizer que, distante das mesas elegantes e do consumo dos shoppings, há casas em que não se come ovo ou carne, só farinha, pão ou macarrão. A nova preocupação da dona de casa é a engorda dos filhos.
Para a economia da casa ir bem, é preciso que os patrões lembrem que tiveram mães ou babás, que mulheres trocaram suas fraldas ou limparam seus penicos. Peço perdão por recordar histórias do antigamente, candidatos, mas nada tão importante a uma dona de casa quanto saber o que comer no jantar ou como seu filho voltou da escola. Por falar em história, já se foi o tempo em que as mulheres seriam só donas de casa. Para ser mais justa, houve mulheres que nunca puderam ser donas de sua casa, pois sempre viveram em quartos escondidos das casas de outras donas.
Preciso confessar, às vezes, acho que os senhores desconhecem o que é uma casa e como se vive nela. O “dona” é só uma expressão, não significa que mandemos nas casas. Começo explicando o básico: há casas pobres e ricas, casas felizes e infelizes. É possível uma casa feliz e pobre, ou outra rica e infeliz. Uma casa muito infeliz, candidatos, é aquela na qual a mulher sofre violência. É na casa em que a mulher tem certeza de que não é dona de nada, nem dela mesma. É na casa em que as mulheres ricas ou pobres, de todas as cores e idades, apanham, e algumas, tristemente, morrem. Na casa, se fôssemos mesmo as donas, não haveria violência. E a violência da casa não se resolve com polícia na rua, cadeia ou isso que chamam de segurança pública.
A casa feliz ou infeliz, pobre ou rica, pode abrigar famílias. Dizem que uma família se forma quando uma mulher engravida ou quando se adota uma criança. Recentemente, conheci duas histórias que me entristeceram. Perdi o sono com elas e esperei tanto que os senhores falassem delas, nem que fosse só para dizer que compartilham da tristeza das donas de casa. Duas mulheres de casas felizes morreram. Elas deixaram os filhos órfãos, os maridos viúvos. Sabem por quê, candidatos? Porque engravidaram e não queriam mais ter filhos. Como o aborto é crime, procuraram uma clínica escondida e bandida para abortar. Uma delas, candidatos, morreu queimada, o corpo foi cortado, os dentes, arrancados. Ela era uma dona de casa, com filhos, com trabalho de salário.
A casa dessas duas mulheres é agora uma casa triste e sem dona de casa. É uma casa sofrida, cheia de saudade das mães que poderiam ser donas, mas foram esquecidas por um Estado que diz ser nosso dever a gravidez, caso contrário, cadeia para todas nós. Candidatos, me perdoem a impertinência, mas quem são as donas de casa para quem os senhores falam quando explicam economia ou inflação?
Débora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Acesse o PDF: Donas de casa, por Débora Diniz (Correio Braziliense, 21/10/2014)