(O Globo, 01/11/2014) Caminhar pelas ruas de um centro urbano pode ser parecido com a sensação de andar por um campo minado para as mulheres. A cada poucos passos, elas podem ser atingidas por cantadas, olhares indiscretos ou até assédio sexual físico. Um vídeo lançado esta semana pela ONG americana Hollaback se tornou viral na internet por provar, com imagens, o que as moradoras de cidades grandes sabem desde a adolescência. Em um passeio de dez horas por diversos bairros de Nova York, a atriz Shoshana B. Roberts foi assediada verbalmente mais de cem vezes. “Sorria”, “Nossa!”, “Deus abençoe”, diziam os homens que passavam pela moça, que usava calça jeans e uma camisa preta sem decote e não respondia às abordagens. Um deles, mais abusado, se irritou com o silêncio: “Alguém está te elogiando. Você deveria agradecer”, reclamou.
Mas o assédio nas ruas não é exclusividade de Manhattan. No Rio, o cenário é bastante parecido. A pedido de O GLOBO, a professora de português Fernanda La Ruina, caminhou por uma hora pelas ruas do Centro, vestindo calça jeans e uma regata branca. Ela recebeu ao menos três cantadas, além de olhares nada discretos. A carioca, que já chegou a registrar um boletim de ocorrência na 10ª DP, em setembro, após ser assediada na Praia de Botafogo. Ela caminhava pela orla quando, ao passar pelo Botafogo Praia Shopping, sentiu a mão de um homem entre as suas pernas. À época, com a ajuda da Guarda Municipal, ela conseguiu localizar o suspeito, que foi encaminhado para a delegacia. Fernanda acredita que videodenúncias, como a feita pelo grupo Hollaback, são importantes para chamar atenção para o problema.
— Me sinto tão invadida quando algo assim acontece. É horrível. Nós, mulheres, nos sentimos como objetos, impotentes e intimidadas — descreve a professora de 31 anos, ainda traumatizada com o assédio sofrido num ônibus esta semana, quando um passageiro começou a tocar seu próprio órgão sexual enquanto a observava. — Campanhas como essa americana podem servir para educar os homens e demonstrar como essas situações são degradantes.
Essa foi a mesma sensação que a fotojornalista Ana Paula Rivello teve quando foi assediada no elevador de um prédio comercial do Centro do Rio. Enquanto aguardava para desembarcar num dos andares, ela notou que o ascensorista tirava fotos de suas pernas e bumbum. Irritada, tomou o celular da mão do funcionário e deletou as imagens, não sem antes dar um sermão no infrator.
— Me senti desrepeitada e oprimida, porque estava sozinha no elevador, com mais dois homens — lembra a mineira de 30 anos, que tentou denunciar o ocorrido ao síndico do edifício. — Pedi ao chefe da portaria para conversar com o síndico, mas ele se negou a me dar as informações. Acabei não conseguindo relatar o que aconteceu e fico chateada toda vez que penso que até hoje ele deve estar naquele elevador, fazendo o mesmo com outras mulheres.
NO BRASIL, COMBATE À INSEGURANÇA
A organização humanitária ActionAid lançou no Brasil, em agosto, a campanha Cidades Seguras para as Mulheres, com o objetivo de chamar atenção para o risco que as mulheres correm nos espaços urbanos, devido à falta de qualidade dos serviços públicos. Para a ONG, uma iluminação pública ruim e a falta de segurança no transporte público são as falhas que mais comprometem a segurança da mulher nas cidades.
— A falha dos serviços públicos nas cidades afeta a liberdade de ir e vir das mulheres, além de limitar suas possibilidades de trabalho e estudo — observa Gabriela Pinto, assessora de Programas da ActionAid. — O que nós queremos é que o poder público se comprometa a melhorar esses serviços, para garantir condições iguais de gêneros nas cidades brasileiras.
Para embasar a campanha, a organização realizou uma pesquisa com 306 mulheres de áreas de periferia no Rio, em São Paulo, Pernambuco e no Rio Grande do Norte e descobriu que 70,6% das entrevistadas já deixaram de sair de casa em determinado horário com receio de sofrer algum tipo de assédio ou violência. Em São Paulo, todas as mulheres que participaram do estudo relataram que já foram assediadas dentro do transporte público. Por outro lado, penas 4,2 % das mulheres denunciam o assédio sofrido.
— Esse número muito baixo reflete o estigma que a mulher sofre quando resolve denunciar o preconceito. Pesquisas e campanhas, como a Chega de Fiu Fiu, que tem a intenção de combater o assédio sexual em espaços públicos, são importantes para “desnaturalizar” essa questão — aponta Gabriela. — Cantadas são, sim, uma violência, inclusive comtemplada pela Lei Maria da Penha, e pouca gente sabe disso. A violência psicológica também é uma violação de direitos, pois limita a capacidade de ir e vir da mulher, através do constrangimento e da intimidação.
A página “Cantada de rua – conte o seu caso” é outra ferramenta de denúncia dos assédios diários. A comunidade do Facebook reúne depoimentos, sempre anônimos, de mulheres que sofreram abusos verbais ou físicos na rua, em casa, ou no trabalho. Desde a sua criação, em 2012, mais de 1.590 testemunhos já foram publicados. Na rede social, as administradoras da página publicaram um texto que elogia a experiência feita em Nova York e ressalta os transtornos pelos quais as mulheres passam por não se sentirem seguras nas vias públicas.
— Ela troca de roupa, ela muda o caminho, ela evita sair a noite e também de dia, ela gasta a mais pegando um táxi em um trajeto que poderia fazer a pé ou de ônibus, ela não passa na frente do bar, ela faz o caminho mais longo, ela passa a usar fone de ouvido para sair a rua, ela só sai se o namorado for junto. Ou ela simplesmente não sai — afirma o manifesto. — Enquanto nem todos os homens praticam assédio, todas as mulheres planejam suas idas a rua pensando nisso.
Marina Cohen
Acesse o PDF: Brasileiras elogiam campanha contra cantadas nas ruas (O Globo, 01/11/2014)