(O Globo, 02/11/2014) É mal contada a história do povo negro no Brasil. Décadas a fio, africanos e descendentes, tanto nos livros quanto no imaginário popular, foram escravos também de narrativas que os associavam à ignorância, à passividade e à submissão resignada aos senhores do período colonial. Revoltas, insurreições e até a resistência quilombola, por longo tempo, estiveram longe dos registros formais. Um tanto desse passivo tem chance de diminuir no curto prazo. Amanhã, em Brasília, o conselho da OAB Nacional vota a criação da Comissão da Verdade da Escravidão Negra, inspirada no colegiado que, desde 2012, investiga crimes cometidos pela ditadura militar.
Se aprovada, a iniciativa vai descortinar outro período igualmente sombrio e camuflado pela dificuldade do Brasil em relatar com honestidade seus caminhos. Anistiadas, partes essenciais da história foram deixadas pelo caminho, em nome da velha cordialidade nacional. Foi o que Abdias Nascimento, maior líder negro do país na segunda metade do século XX, ousou chamar de mentira cívica. O ex-senador, que neste 2014 completaria cem anos, morreu sem testemunhar a reconstituição que ora se avizinha. Em discurso histórico ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade Federal da Bahia, ainda no ano 2000, Abdias exortava a comunidade acadêmica a se libertar do que batizou de cativeiro eurocentrista.
Quatorze anos depois, a semente da Comissão da Verdade da Escravidão germinou durante a última Conferência Nacional dos Advogados, mês passado, no Rio. Presidente da OAB Nacional, Marcos Vinicius Furtado é defensor entusiasmado da proposta. “O inventário da escravidão será mais um ajuste de contas do país com sua História, resume. Na sequência, virão os indígenas, avisa. Uma vez implementada a comissão da Ordem, a intenção é apresentar o projeto ao governo federal. A investigação sobre o regime escravocrata sucederia, já em 2015, a Comissão Nacional da Verdade (da ditadura), que chega ao fim este ano.
Os trabalhos vão se ancorar em três pilares, segundo Furtado. O primeiro é o resgate histórico; o segundo, a aferição de responsabilidade. O último será a demonstração da importância das ações afirmativas como meio de compensação de danos à população negra. A OAB atuou na defesa jurídica da política de cotas no acesso à universidade, considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, por dez votos a zero, em 2012, e vigente em quase 60 instituições públicas de ensino superior.
Humberto Adami, presidente do Instituto da Advocacia Racial e Ambiental, defende a reparação financeira dos crimes da escravidão, tal como nas indenizações às vítimas da ditadura. De 2001 ao ano passado, a Comissão de Anistia aprovou 40.300 pedidos, no valor total de R$ 3,4 bilhões. No caso dos negros, a compensação se daria, por exemplo, pela criação de fundos para financiar projetos de história, cultura e inclusão social em cidades marcadas pelo escravismo.
Fica aqui a sugestão para que, se instituído, o futuro fundo de reparação tenha um quinhão dedicado à preservação das religiões de matriz africana, que padecem, Brasil afora, sob a chaga da intolerância. Candomblé e umbanda são herança da presença da África na formação nacional. E, até hoje, símbolos de resistência.