(Fórum, 20/11/2014) Assédio sexual, ameaças e xingamentos faziam parte da rotina da menina que veio ao mundo predestinada à intolerância; mas ela venceu e hoje luta pelos direitos dos que ainda estão por vir: “Não quero ser uma exceção. Espero que você possa escrever que, um dia, todos nós conseguimos”
Josefina Serra, de 53 anos, nasceu no interior do Maranhão, filha de um agricultor e uma quebradeira de coco-babaçu. Afastada da família aos 5 anos, passou a trabalhar em fazenda e, aos 6, foi levada à capital, São Luiz, para ser empregada doméstica. O tempo foi passando, mas a situação não mudou. Lavava roupas, passava, cozinhava, cuidava de outras crianças e se ressentia de não poder subir com elas no mesmo elevador. Usava roupas e sapatos velhos, doados pelos patrões. E, na escola, os preconceitos em relação à cor, à origem e ao trabalho que desempenhava foram motivos para que não cultivasse amigos.
As piadas racistas eram bastante frequentes. Assédio sexual, ameaças e xingamentos faziam parte da rotina da menina que veio ao mundo predestinada à intolerância. Foi nos estudos que ela encontrou uma fuga para tudo aquilo e, obstinada, conseguiu se formar em Direito. Já morando em Brasília, tornou-se uma referência no movimento negro e, em 2011, foi nomeada como a primeira secretária de Igualdade Racial do Distrito Federal, no governo de Agnelo Queiroz (PT). Em comemoração ao 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, ela conversou com a Fórum sobre a luta de negros e negras em busca de igualdade, respeito e mais valorização na sociedade.
Fórum – Celebramos mais um 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra. Quais conquistas o movimento negro tem a comemorar nesta data? E quais desafios ainda vê pela frente?
Josefina – Para mim, a principal conquista é, depois de muita luta, a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República. A partir dela, também surgiram outras secretarias estaduais. A população negra está mais atenta à importância de se denunciar casos de racismo na sociedade. Com a ajuda da imprensa, a gente vai continuar denunciando.
Outro avanço foi a Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas. A educação de qualidade só vai acontecer quando conseguirmos implementar essas leis. Por isso, há evasão escolar de grande parte das crianças negras e indígenas; elas não se sentem incluídas.
É preciso comprometimento dos professores e, principalmente, do poder público. Não podemos falar sobre esse assunto só no mês de novembro. E os outros meses? Sobre os desafios, ainda há o que chamamos de ‘genocídio’ de jovens negros, já que eles têm muito mais chances de morrer de forma violenta do que jovens brancos.
Fórum – As mulheres negras também enfrentam uma dupla discriminação – racial e de gênero. Na sua opinião, como a mídia ajuda a reforçar os estereótipos em relação a elas no Brasil?
Josefina –Tem uma dualidade. Ao mesmo tempo em que a mídia ajuda a denunciar o preconceito, alguns veículos, principalmente a TV aberta, erotizam a figura da mulher negra. E, nesse sentido, nos agridem, como se estivéssemos aí para sermos usadas e jogadas fora. Isso está enraizado sob o machismo. Somos inteligentes, trabalhamos, muitas criam os filhos sozinhas. E tem essa velha relação entre a mulher negra e a questão sexual.
Para conseguir um cargo, ela é preterida em relação à mulher branca, que, por sua vez, é preterida em relação ao homem branco. Você sabe como a mulher negra é tratada dentro de um hospital na hora do parto? Muitas não recebem nem anestesia, porque são consideradas mais fortes do que as outras, quase como um animal. Algumas morrem ou acabam perdendo a criança.
Elas são boa parte das que fazem abortos clandestinos e, quando chegam aos hospitais, são escorraçadas. E quando você assume o seu cabelo e usa ao natural? Dizem que melhor é o liso. Por isso, temos que nos unir mais. Se você não é unido, fica mais fácil de ser manipulado. Quando não tem informação, não observa o racismo nos pequenos detalhes.
Fórum – A senhora passou por um caso lamentável de racismo no último mês. Conte um pouco sobre como isso aconteceu…
Josefina – Sim, isso acontece conosco independentemente da idade e do grau de instrução. Eu vinha de uma audiência e tinha uma reunião. Estava passando perto do Museu Nacional e resolvi fazer o trajeto a pé. Antes de chegar, vi uns policiais fazendo ‘baculejo’ em quatro jovens. Eram três meninas brancas, que foram liberadas, e um menino negro. Estava gritando, com uma arma apontada para ele. Quando cheguei, os policiais estavam indo embora. Perguntei o nome dele, onde morava e pedi que fosse para casa.
De repente, vi a viatura chegar, um monte de gente descer e pedindo para eu parar. Só parei porque disseram: ‘se não virar, eu atiro’. Um policial grandão me pegou pelo braço, fiquei apavorada. Ele torceu o meu braço, jogou meu celular longe, que era para não ligar para ninguém. Nisso, todo mundo passando e ninguém se importou. Fiquei sozinha com cinco policiais. Outra moça me virou para a parede, suspendeu minha blusa, jogou no chão tudo o que estava na minha bolsa.
Ela falou que isso era um ‘procedimento padrão’ em pessoas como eu. Disse que era advogada, mostrei minha carteirinha. ‘Essas neguinhas, quando aprendem alguma coisa, acham que são gente’, ela respondeu. Depois que levantei, saíram rindo. Quando viram que eu ia tirar uma foto, ameaçaram jogar o carro em cima de mim.
Fórum – E denunciou?
Josefina – Denunciei na corregedoria da Polícia Militar e fiz um boletim de ocorrência na 5ª DP. Aconteceu a mesma coisa com outra colega, uma estudante da UnB [Universidade de Brasília]. Ainda jogaram no camburão e bateram nela. A violência contra a gente está aí. Depois que aconteceu comigo, fiquei em estado de choque. Fiquei sentada na reunião em estado de choque, só consegui falar no outro dia.
Fórum – Tendo um histórico de trabalho infantil e uma série de violações de direitos, a senhora imaginaria chegar aonde chegou?
Josefina – Fui a primeira secretária de Igualdade Racial do Distrito Federal. Foi uma luta muito grande. Quando saí do meu quilombo, nunca imaginei isso, que me tornaria advogada, que seria de tantos movimentos, mas sempre fui curiosa. No entanto, não quero ser apenas uma pessoa de referência, não quero ser uma exceção. Espero que a gente não precise ficar contando essas histórias como uma exceção. Espero que você possa escrever que, um dia, todos nós conseguimos.
A ex-empregada conseguiu se formar em Direito para que todo mundo tenha acesso também. Quantos negros estão na faculdade? Quantos são médicos, advogados? O Brasil é esse caldeirão de misturas. Torço para que os professores tratem igualmente as nossas crianças, que os nossos filhos saibam que eles também podem. Todo mundo aprende, é uma questão de oportunidade.
Maíra Streit
Acesse no site de origem: De empregada doméstica a Secretária de Igualdade Racial: conheça a história de Josefina (Fórum, 20/11/2014)