(Jornal do Campus, 03/12/2014) Heloisa Buarque de Almeida é doutora em Ciências Sociais e coordenadora do programa USP Diversidade. Na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), ela é a professora responsável por ministrar a disciplina de “Antropologia e Gênero”. Em entrevista para o Jornal do Campus, ela comentou os casos de preconceito, violência e abuso sexual que vêm ocorrendo na Faculdade de Medicina (FMUSP).
Como você se aproximou dos incidentes da Medicina?
Aqui na FFLCH eu ministro uma disciplina sobre Teoria de Gênero, que é uma das poucas disciplinas teóricas sobre teoria de gênero das ciências humanas que a gente tem na USP como um todo. Então, vêm alunos da Letras, História, Geografia, da ECA, da Educação, do Direito… e até o pessoal da Medicina começou a me procurar por causa dessa disciplina. Eu sempre aceito alunos de várias unidades e as turmas ficam imensas, até porque eu acho que a Universidade é pública e nós temos que acolher os alunos. A classe fica meio grande, mas tudo bem.
Por causa dessa disciplina algumas meninas, vinculadas ou não a coletivos feministas, começaram a me contar, primeiro, dos casos de estupro em festas na USP. Esses casos não são um problema exclusivo da Medicina. É bem generalizado, presente também no direito, nas engenharias, ou interior… e isso acontece mesmo nos cursos mais “LGBT friendly”, que eu costumo falar. Isto é, mesmo em lugares que são mais aberto, menos machistas, tradicionalmente.
O que você observou ao estudar esses casos?
A primeira coisa que eu notei é que há um problema muito evidente com a noção de consentimento, ou seja, o que é sexo, que é essa ideia de que se a menina está bêbada ou já deu bola antes, “ajoelhou, tem que rezar”. A sensação que eu tenho desses casos é que, antigamente eles também aconteciam, mas a menina se sentia culpada e não denunciava.
Hoje elas percebem isso. As meninas mais jovens estão percebendo isso como uma violência, um estupro. Eu faço muitas pesquisas com mulheres e eu sei que muitas das mais velhas tiveram episódios assim em suas vidas, mas elas pensavam “a culpa foi minha, eu bebi”. Elas não qualificavam aquilo como um estupro, por exemplo, que é uma maneira de classificar uma experiência. Se você conversar com uma pessoa mais velha, às vezes ela vai falar “ah, mas a menina não se deu ao respeito”. É um problema de geração mesmo que vem por uma experiência geracional de como você classifica o que é sexo, o que é violência, o que é estupro. Isso vai mudando. Nem sempre o que você chama de violência é igual ao que eu chamo de violência que é igual ao que uma pessoa que mora na favela chamaria de violência.
Como você caracteriza o problema da violência especificamente da forma como ela se dá na FMUSP?
Há dois universos de problemas. Tinha esse problema dos estupros nas festas, que eu acho que é mais geral, mas tinha um outro nível de problema muito claro, que nos casos da Medicina estão aparecendo juntos. Um tipo de problema também muito grave na USP, mas que pode ser visto por muitas pessoas como desimportante. Os estupros ninguém nega que são importantes. Ninguém é a favor do estupro. É um problema que apareceu como específico da Medicina, mas que não é só da Faculdade de Medicina da USP e isso eu gostaria de enfatizar. É um problema que está nos cursos mais antigos e tradicionais, que é esse “ritual de iniciação”, que a gente associa também ao trote.
Eu digo que a Universidade não pode mais ter trote. Ela tem que ter recepção aos calouros, festas, calourada… mas trote está associado a violação de direitos humanos. O trote e as festas tradicionais, como o Show Medicina, como as festas da Atlética, mas, de novo, não só na Medicina, são coisas muito antigas, que soam como tradicionais, às vezes mais antigas à própria USP. São rituais de iniciação marcados por abusos corporais e psicológicos que criam aquela coisa de que em um ano o calouro sofre aquele abuso e no ano seguinte ele será o perpetrador daquele abuso. Isso cria uma comunidade de segredo, uma espécie de grupo secreto, que em alguns cursos permite uma hierarquia entre os alunos legais, “bacanudos”, que suportam, os que aguentam, que passam pelos rituais e que vão perpetrar a violência nos anos seguintes, e os alunos que não passaram por isso, que não se submeteram, ou que se submeteram inicialmente mas que depois decidiram sair daquilo. E, infelizmente, parece ser um nível de hierarquia que liga alguns alunos a alguns professores. Parece estar ligado a algumas residências da Medicina. Eu não saberia mapear quais e eu não quero acusar individualmente ninguém sem ter provas, mas eu quero alertar para o problema.
Então, esse tipo de ritual foi naturalizado durante tantos anos e agora quando se fala que não pode mais fazer, dizem “isso é frescura, é bobagem”. E os professores mais antigos dizem “não, mas isso não é importante, isso é só uma brincadeira”, quando na verdade isso poderia ser uma brincadeira há 70 anos atrás, mas a sensibilidade da sociedade mudou. Há 40 anos atrás as pessoas batiam de cinta nos filhos e ninguém achava nada de errado. Hoje em dia isso é considerado criminoso. Mudou a qualificação. Estupro, por exemplo, era só penetração vaginal. Hoje em dia isso é mais amplo, tanto que um rapaz pode sofrer um estupro, porque a definição legal de estupro hoje é sexo sem consentimento, por isso inclui a questão da bebedeira. Se a menina está bêbada, ninguém pode abusar de seu corpo. A mesma coisa em relação aos trotes. O que era piada antigamente, hoje em dia não pode mais ser aceito, principalmente num contexto na Medicina, por exemplo, em que existe uma demanda por uma Medicina mais humanizada, que é uma demanda internacional, inclusive ligada a organismos internacionais. Isso demanda que a Universidade olhe isso de um jeito diferente do que tem sido feito até então.
O caso da Medicina ganhou muito destaque porque juntou esse tipo de trote com a violência sexual das festas, os estupros. Nem sempre eles estão associados. Isso permite que alguns desses casos sejam realmente vistos como gravíssimos. Isso vai permitir, e é muito importante isso, que a Universidade se repense. Nas Universidades federais, por conta inclusive das cotas, você tem agora uma pró-reitoria de assuntos estudantis, de assuntos comunitários. Isso permite que você comece a pensar os relacionamentos entre alunos, professores e funcionários como um problema que a gente precisa lidar com políticas, com planejamento mais de longo prazo do que fazer: como combater a violência nos trotes, como trocar o trote por uma recepção aos calouros, como combater a ideia de humilhação. Porque o trote vem de uma tradição universitária de quando a Universidade era uma elite mínima que fazia entre si mesmo esse trote, e criava uma corporação de segredo, uma mentalidade classista, de “nós somos os bons”. Agora, nós temos que olhar para a Universidade pós democratização, pós constituição de 88 de um outro jeito. É preciso mudar. O que eu vejo é que é preciso planejar políticas de planejamento desse relacionamento estudantil, acadêmico, dentro da Universidade. Políticas que incluam algo que nós não temos na USP, que é um código de ética, um manual de convivência. Porque nós não sabemos mais as regras do convívio. Não dá mais pra confiar no bom senso ou na educação familiar das pessoas.
A Universidade hoje é muito grande. Ela tem quase 100 mil alunos e é preciso pensar em regras de convivência no bom sentido da regra, no sentido do respeito, de convivência. Não é que não se possa ter festas, que não se possa beber. Mas se as festas se tornam um lugar de abuso, esse tipo de festa não se pode ter mais. É outra coisa. Do meu ponto de vista, o problema é como fazer a confraternização. Se a festa se torna um espaço de coação, de constrangimento, de humilhação, a piada machista, a piada homofóbica, a piada racista…. aí temos um problema.
O que eu sinto é que é preciso criar uma política transformadora na Universidade e essa política não basta vir de cima para baixo. Ela deve contar com a participação dos alunos, porque os alunos já estão participando, visto o fato que na Universidade estão aumentando cada vez mais os coletivos feministas, os coletivos LGBT. Eu às vezes discordo dos coletivos, mas eu saúdo a presença deles aqui. Eles são importantíssimos para a gente criar parcerias com alunos que buscam essa ideia da boa convivência. Da mesma forma que a gente não quer mais aceitar o trote, não queremos mais aceitar que o aluno sofra coação, constrangimento, humilhação para ser aceito na Universidade. A gente (a sociedade brasileira) não quer mais aceitar algumas coisas como a piadinha machista em sala de aula. O professor tem uma posição de autoridade, ele não pode humilhar as alunas mulheres. Assim como ele não pode fazer algo contra os negros ou os gays. E a gente começa a ter também alunos transexuais, travestis. Eles tem que ser recebidos, acolhidos, respeitados. É fundamental, porque a sociedade mudou, essas pessoas estão aí, elas são parte da sociedade. A gente tem que ter um esforço de convivência e de conscientizar alunos professores e funcionários que é preciso ser diferente, de que a Universidade pode ser um lugar de acolher as diferenças. É possível.
Vão haver conflitos, mas o que não se pode ter é uma violência institucionalizada e naturalizada como se tem no trote. É urgente que isso acabe. Isso não acaba só se a Universidade proibir. Os alunos tem que entender. Isso acaba se o aluno lá da Atlética da Medicina, por exemplo, entender que aquilo que ele acha que é uma brincadeira, uma piada, chama-se vioência, chama-se violação de direitos humanos e isso é crime.
Não se trata de acusar a Faculdade de Medicina. O estuprador tem que ser responsabilizado criminalmente sim. É evidente que sim. Mas na Universidade a gente não pode prender ninguém. Eu falo isso para as meninas dos coletivos feministas. Foi estupro? Tem que denunciar na delegacia da mulher. O atendimento é complicado, é ruim? É, mas tem que tentar. Eu também entendo o caso das meninas que não têm coragem. Eu entendo. Por isso que eu recomendo que elas vão à primeira DDM, na Sé, que é a que está mais empenhada. E eu sei disso por diversas alunas que estudam DDM’s. Por outro lado, se não podemos ser polícia, nós temos mecanismos de apuração e punição interna, administrativos, que no limite podem expulsar o aluno. Infelizmente, o processo é lento. Primeiro surge uma comissão sindicante, leva-se três meses e depois pode surgir um processo disciplinar. Mesmo assim, é importante que as denúncias sejam feitas.
Voltando à questão decisão da Congregação da Medicina, o que você achou das resoluções que foram tiradas na última semana, que envolvem a proibição de festas e álcool na Universidade, além da criação do Centro de Defesa de Direitos Humanos?
Eu entendo que no momento, dado o grande escândalo, seja necessário fazer algo mais radical, do tipo “vamos olhar o problema”. Mas não é a melhor solução. É mais importante criar regras de convivência e permitir a confraternização dos alunos. A questão do álcool é mais polêmica, porque há leis estaduais a respeito, então é mais complexo do que nosso desejo interno. Mas só o proibicionismo não vai resolver.
Sobre ter uma comissão de direitos humanos, isso é excelente. Sou de opinião, inclusive, que a USP tenha um comitê central que não fosse formado por professores de dentro, como diversas Universidade norte-americanas, para discutir o problema de assédio e violência sexual.
Como você vê a questão das meninas que colaboram com esse machismo? Você acha que elas se submetem a esse tipo de ação pela empolgação do ingresso na Universidade ou porque ainda há muitas mulheres que são contaminadas pelo machismo desde seu crescimento?
Eu acho que são os dois problemas, na verdade. Todos os cursos de Medicina do Estado de São Paulo têm esse problema. A aluna que fica dois, três anos fazendo cursinho para entrar na Medicina já sabe desse trote. Por um lado, ela já vem com a mentalidade de encarar isso como mais ou menos normal. Por outro, sem querer, sem ter consciência disso, às vezes as mulheres reproduzem o machismo na criação familiar. Então, quando uma mulher tem um filho e uma filha e fala para a filha lavar a louça e que o menino não precisa ajudar nas tarefas de casa, ela está reproduzindo uma desigualdade de gênero.
O que eu acho é que, talvez, os casos de estupro tenham aumentado justamente por uma transformação na sociedade brasileira. Parece que, antigamente, se todo mundo tinha que ser recatado, agora parece que se a menina entra na Universidade ela tem a obrigação de “dar”. E não deveria ser isso. Tudo deveria ser escolha. Nem tem que ser recatada e nem tem que se forçar a transar com todo mundo. O que vemos em relação ao trote é meninas topando brincadeira muito machistas e humilhantes porque ela se sente na obrigação de mostrar que ela não é tão careta assim. Isso é coação, é um constrangimento, uma humilhação, não é brincadeira. É com isso que tem que tomar cuidado.
Como você chegou ao USP diversidade?
Comecei a me aproximar do programa ao conhecer esses casos. Aí o então coordenador, Ferdinando Martins, pediu para eu assumir o programa, porque ele estava se sentindo sobrecarregado. O USP Diversidade foi criado para lidar com casos de homofobia, mas o Ferdinando percebeu que nós tínhamos um problema de violência machista que cabe dentro do nosso escopo.
Otávio Nadaleto
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