(SRZD, 11/12/2014) Uma revista feminina lançou a campanha de descriminalização do aborto e reacendeu o debate sobre o tema nas redes sociais. A hashtag #precisamosfalarsobreaborto gerou discussões no Facebook e no Twitter nas últimas semanas. Várias celebridades e figuras públicas manifestaram apoio à ação e postaram fotos e declarações sobre o assunto. Os atores Gregório Duvivier, Alessandra Negrini, Leandra Leal, a cantora Tulipa Ruiz e os políticos Jean Wyllys e Marcelo Freixo foram algumas das personalidades que aderiram ao manifesto.
No Brasil, o aborto é considerado crime previsto em Código Penal, nos artigos 124, 125 e 126, do decreto de lei nº 2848/40. No entanto, conforme o estudo “Magnitude do abortamento induzido por faixa etária e grandes regiões”, em 2013 mais de 200 mil internações foram realizadas em decorrência da prática no país, das quais mais de 150 mil ocorreram por interrupção provocada. A pesquisa, realizada pelos professores Mario Giani Monteiro, do Instituto de Medicina Social da Uerj, e Leila Adesse, da ONG Ações Afirmativas em Direitos e Saúde, revela que o número de mulheres que passaram pelo procedimento é quatro vezes maior do que o de internações.
O assunto ainda é considerado tabu na sociedade brasileira por envolver questões morais e religiosas. Apesar de ser de cunho privado, a gravidez e a maternidade são discutidos publicamente. De um lado, estão as instituições “pró-vida” como a Igreja, que argumentam que a descontinuidade da gestação é assassinato, pois tiraria a vida de um ser em curso; de outro, estão os movimentos “pró-escolha”, que se baseiam na liberdade e autonomia femininas sobre o próprio corpo.
Enquanto as duas frentes divergentes se digladiam, mulheres são vítimas de cirurgias mal-sucedidas e intervenções amadoras realizadas em locais sem condições básicas de assistência médica de qualidade. As mortes de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, 27anos , e Elizângela Barbosa, 32, por exemplo, foram os mais recentes incidentes que vieram a público e chocaram a sociedade.
As complicações decorrentes de métodos abortivos em clínicas clandestinas fazem milhares de vítimas anualmente, e levantam a questão da urgência de um sistema público de assistência médica que atenda às grávidas que optam por não levar adiante a gestação. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a cada dois dias uma mulher morre no Brasil devido à pratica ilegal, o que torna a problemática uma matéria de saúde pública.
O SRZD conversou com a jovem X, 26 anos, publicitária. Ela engravidou aos 18 anos do namorado e, devido à falta de condições financeiras e por decisão própria, decidiu pela interrupção da gravidez. X nos conta que estava começando a faculdade e não queria desistir dos estudos.
“Na época, eu não usava pílula mas sempre transei de camisinha, porém naquela vez cometi um deslize. Eu estava namorando, mas mesmo assim eu não tinha maturidade para dar à luz uma criança. Eu tinha 18 anos e não tinha como me sustentar, não me sentia confortável em ter filho muito nova. Não tive informação, não sabia onde fazer, pesquisei na internet para me inteirar. Fiz [aborto] em uma clínica no Rio de Janeiro que existe há anos, e já foi fechada e reaberta diversas vezes. A escolha foi um processo muito ruim, no entanto, os parentes e amigos ao meu redor respeitaram minha decisão e não houve julgamentos. As pessoas julgam mas não conhecem a realidade feminina”, desabafou a publicitária.
Ela afirma ainda que apoia a descriminalização de quem realiza a intervenção gestacional e defende iniciativas como a #precisamosfalarsobreaborto, por trazerem à tona o problema da falta de atendimento qualitativo às mulheres que necessitam e/ou escolhem realizar esse método cirúrgico.
“Hoje em dia sou a favor do aborto porque é o mínimo de escolha que a mulher pode ter. Já era para ter sido legalizado há muito tempo, é caso de saúde pública, não é frescura. Não tem porque não ser legalizado, é um absurdo a gente ter que passar por sessa situação. Nunca quis ser mãe, mas hoje, se acontecesse de novo, eu assumiria a responsabilidade”, relatou X.
O SZRD entrevistou a cineasta Renata Correa, idealizadora do documentário “Clandestinas”, sobre o processo de produção do curta-metragem e a opinião dela sobre o tema. Na obra, depoimentos reais de quem abortou se mesclam com declarações fictícias de atrizes. Correa acrescentou também que algumas leis brasileiras se tornaram obsoletas e são um entrave para o avanço da discussão no país. A regra que proíbe o aborto, por exemplo, foi promulgada em 1940, ou seja, há mais de 70 anos.
Confira o curta “Clandestinas”:
“Para fazer o ‘Clandestinas’ entrevistei pessoas que abortaram, recolhi depoimentos no site ‘Somos Todas Clandestinas’ e misturei as declarações reais com as de atrizes para poder proteger a identidade de quem passou pela experiência. Eu acabei percebendo que mulheres das classes média e alta, com dinheiro para pagar, recebem tratamento com métodos seguros. E, para as grávidas de periferia, a situação é mais dramática, pois muitas tentam métodos caseiros ou vão em clínicas onde correm o risco de morte. Se houvesse a descriminalização, elas teriam atendimento adequado e não morreriam. Isso é uma questão de saúde pública, onde mulheres de todas as classes vão receber o mesmo tratamento. Eu vejo também que há um cerceamento das liberdades individuais, principalmente a feminina. O nome do documentário foi escolhido, obviamente, por causa do estado clandestino de quem passa pelo procedimento considerado ilegal no Brasil, embora já legalizado em 64 países. Nossa legislação é arcaica”, disse Renata Correa.
Para a advogada Ana Paula Schiamarella, integrante do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), a decisão de interromper a gravidez é da própria gestante. Ela falou com o SRZD sobre a necessidade da fomentação do debate na sociedade para que não haja mortes de quem passa por momentos de desespero e não tem assistência alguma. Para ela, o termo é tabu por conflitar com interesses religiosos e políticos. Entretanto, ambas as áreas não deveriam se misturar devido ao fato do Brasil ser um país laico, pelo menos teoricamente.
“O aborto é um tema que ninguém quer debater por ser polêmico e esbarrar em diversas questões como a religião e a política. Muitas das vezes, ‘autoridades’ e representantes religiosos pressionam o Legislativo para que a alteração na lei não aconteça e não haja a descriminalização. Então, os parlamentares se sentem pressionados e não levantam o debate por medo de perder votos de uma parcela da sociedade. Enquanto discutimos o Direito do Nascituro, já tem uma mulher viva que precisa do procedimento com urgência. Quem é a favor do aborto também é favorável à vida: a da mãe. Essa é uma decisão pessoal, e como tal não cabe ao coletivo decidir dizer se ela pode ou não ter o filho”, afirmou a advogada.
Schiamarella ressalta que a criminalização da prática abortiva atinge com predominância as mulheres pobres, sem condições de pagar procedimentos cirúrgicos em locais que garantem a vida da paciente e também o sigilo e proteção da identidade dela. Por sua vez, as que têm boas condições financeiras não passam por esses constrangimentos.
“Sou favorável à descriminalização da conduta para que a mulher possa decidir por realizá-la, se for da própria vontade, e que ela possa assim proceder em condições seguras para não acontecer como nos casos noticiados recentemente [as mortes de Jandira e Elizângela]. Essa é uma prática que é realizada todo o dia, com ou sem legalização, e tem como base a autonomia reprodutiva e também o contexto social. Por exemplo, as mulheres indiciadas por aborto geralmente são pobres, negras, com baixa escolaridade, então percebemos que as possuidoras de alto poder aquisitivo conseguem procurar clínicas que, embora não legalizadas, garantem o acesso ao serviço sem envolvê-las em indiciamentos criminais. Até agora, não vi processos na Justiça contra mulheres de classe média ou alta, isso é um reflexo de que a criminalização incide de forma distinta conforme a classe social”, observou a integrante do CLADEM.
O debate sobre a interrupção da gestação mobiliza setores da sociedade quanto à necessidade de acesso feminino a sistemas de saúde que venham garantir a integridade física das grávidas que tomam a decisão de abortar. A revista “TPM” realizou um encontro para abordar a descriminalização e os motivos que impelem à mulher a realizar o procedimento. O vídeo, desdobramento da campanha #precisamosfalarsobreaborto, foi ao ar na terça-feira passada, 2, e contou com a participação da cantora Karina Buhr, da antropóloga Debora Diniz e da presidente do CLADEM no Brasil, Gabriela Ferraz.
Assista ao conteúdo do bate-papo:
O deputado federal Jean Wyllys (PSOL) manifestou apoio à ação e publicou em seu perfil no Facebook uma foto com o slogan da campanha escrito em um papel branco. No texto, ele salienta os motivos que o levaram a ser favorável à causa. O parlamentar também critica as leis do país que não contemplam as mudanças que acontecem na sociedade brasileira.
“Só quem pode falar disso [aborto] são as mulheres. Mas é absurdo que nossa legislação criminalize aquelas que cometem o aborto e isente os homens da responsabilidade. Isso diz muito da face do nosso Congresso Nacional, que infelizmente diz representar (mesmo sem acompanhar as mudanças) uma sociedade que está transformando lá fora. O aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil e a gente precisa enfrentar isso. Pobre ou rica, alta ou baixa, negra ou branca… a mulher que pratica o aborto clandestino no Brasil não se encaixa em um só molde. A diferença é que, aquelas sem condições financeiras que proporcionam acesso à assistência médica de qualidade, morrem, ou procuram, em vão, assistência da saúde pública. Em nome de todas essas mulheres, é fundamental que deixemos a hipocrisia de lado e passemos a tratar o aborto como o que ele é de fato: um caso de saúde pública e não de valor, princípio ou religião. Mortalidade materna não pode ser consequência da falta de assistência médica pública hospitalar. O Estado brasileiro é Laico e a Mulher é livre!”, disse Jean Wyllys, em sua página na rede social.
O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) também usou a internet para demonstrar a adesão à #precisamosfalarsobre aborto. No entanto, ele foi mais econômico nas palavras do que seu colega de partido, Jean Wyllys. Segurando uma placa, Freixo publicou a legendou a imagem com a frase: “Devemos ter coragem para fazer o debate sobre o aborto, mesmo remando contra a opinião pública hegemônica. Precisamos romper o silêncio e falar sobre aborto como a questão de Saúde Pública.”
Nesta terça-feira, 9, o programa “Sala de Debate” discutiu sobre a legalização da prática abortiva e os obstáculos para sua regulamentação. A produção televisiva reuniu Regina Soares Jurkewicz, coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, Dom Antônio Augusto, bispo auxiliar da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil/RJ e Débora Diniz, antropóloga e coordenadora da Pesquisa Nacional de Aborto, que participou via internet. Eles abordaram a polêmica do ponto de vista científico e social, mas sem deixar de mencionar a visão da religião acerca do conteúdo discutido.
Histórias como a da publicitária X, entrevistada pelo SRZD, se repetem diariamente e muitas acabam em tragédia. No entanto, a problemática é varrida para debaixo do tapete enquanto milhares de mortes acontecem anonimamente em clínicas “de fundo de quintal”. Indiferente a isso, interesses diversos emperram o tratamento adequado ao tópico. Para denunciar os abusos contra a mulher, e não deixar que o assunto caia no esquecimento, é organizada todos os anos a Marcha Mundial da Vadias. Em todos o país, milhares de feministas saem às ruas para protestar contra o machismo, o estupro, a violência contra a mulher e, inclusive, a criminalização do aborto.
Roberto Pereira
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