(Zero Hora, 17/01/2015) A gaúcha Luiza Bairros, 61 anos, desde 2011 ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), órgão ligado à Presidência da República, deu lugar à pedagoga e antropóloga mineira Nilma Lino Gomes na recente renovação do ministério de Dilma Rousseff. Aqui, Luiza fala da época em que viveu em Porto Alegre até se formar em Administração Pública e de Empresas pela UFRGS. Sua família era da antiga Colônia Africana, um reduto negro que se desfez por volta dos anos 1940 para dar lugar ao bairro Rio Branco. Em 1979, ela adotou Salvador e perdeu contato com a terra natal. O pouco que recorda do Sul são os códigos de condutas que a convidavam a subir pelo elevador de serviço quando visitava colegas da escola.
Nesta entrevista, a ministra comenta sobre o rotundo insucesso das candidaturas negras nas eleições de 2014 e lembra que basicamente o eleitor negro, mais favorecido no Bolsa Família, ajudou na reação dos índices da presidente Dilma em setembro diante da candidata Marina Silva. Sobre os casos de racismo que marcaram o futebol no ano passado, Luiza acredita que o episódio com o então árbitro Márcio Chagas serviu para encorajar a reação do goleiro Aranha. Para ela, o país já não suporta o desrespeito, o que explica as denúncias de racismo hoje cada vez mais frequentes.
A senhora fez a carreira como ativista do movimento negro em Salvador, mas é de Porto Alegre. Como foi sua vida no Sul?
A minha família é da Rua Casemiro de Abreu, parte acima da Rua Mariante, no bairro Rio Branco, na zona que foi a antiga Colônia Africana (região habitada por escravos após a Abolição e que se manteve como reduto negro até cerca de 1940, com o erguimento do bairro Rio Branco). Tenho muitas recordações, mas não sei precisar, porque o núcleo da família, pai e mãe, foi para o Menino Deus quando eu ainda era criança. Ainda ficou uma relação com o local porque os mais velhos permaneceram na Casemiro. Hoje não tem mais a casa por conta da modernização. Ela foi destruída e uma rua passa por cima. As casas antigas da região desapareceram.
Havia na família relatos da Colônia Africana?
Não posso dizer que ouvi muito desses relatos. Meus tios eram muito ligados a Carnaval e a festas da comunidade negra. Eu ouvia mais sobre grupos carnavalescos, a rivalidade tradicional entre eles. Mas a memória já não é tão específica, é mais genérica.
Onde a senhora estudou em Porto Alegre?
Estudei no Nossa Senhora de Lourdes, quando era na Rua Marcílio Dias, e depois na escola estadual Infante Dom Henrique, quando era na Rua Botafogo, no Menino Deus, e me formei em Administração Pública e de Empresas na UFRGS, em 1975.
A senhora chegou a frequentar os clubes negros da cidade nos anos 1970?
A minha vida social foi apenas no Floresta Aurora (antigo clube negro de Porto Alegre, com mais de 100 anos). Mas sabia dos bailes do Metalúrgicos (na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, no bairro Cristo Redentor, zona norte de Porto Alegre, havia bailes com dias específicos para brancos e negros), porque meus parentes me contavam. Era um fato bem emblemático do padrão de comportamento social que Porto Alegre manteve durante muito tempo.
Como foi conviver com este padrão de Porto Alegre?
Para uma pessoa da minha geração, a gente era criado conhecendo esses códigos de conduta. Não se desafiava a forma como a sociedade era organizada. Eu tive a sorte de estar dentro de uma família que nos preparou muito bem para poder navegar dentro dessa realidade da cidade.
A senhora sofreu racismo aqui no Sul?
A discriminação mais explícita eu sofri na adolescência, quando ia ao edifício onde moravam colegas brancas da escola e sempre havia um porteiro disposto a me indicar a porta do elevador de serviço. Aquilo era explícito. Quando eu circulava dentro dos códigos mantidos pela cidade, não havia problema. O complicado era quebrar o código e passar a circular em lugares onde a presença é tida como estranha.
Sua militância no movimento negro começou em Porto Alegre?
Não, começou depois, na Bahia. Quando eu estava fazendo Administração na URFGS, participei do movimento estudantil. Mas o movimento negro em Porto Alegre era muito fechado, muito restrito. Você só entrava nos grupos depois de uma referência de alguém, e a verdade é que eu nunca consegui participar. Só passei mesmo a seguir o movimento quando fui para a Bahia, já em 1979. Era diferente a maneira de como eles se organizavam, com reuniões públicas, muito bem anunciadas.
Persiste a ideia de que as cotas degradam a universidade?
Na prática, não. Porque todas as avaliações feitas por diferentes universidades mostram que o desempenho do estudante cotista é muito próximo quando não um pouco superior ao de quem entra pelos mecanismos tradicionais. Então, esse tipo de preocupação já foi superado. Não significa que as pessoas contrárias às cotas tenham deixado de usar esse argumento. Contra todas as evidências, há pessoas que ainda afirmam que as cotas contribuem para diminuir a qualidade do ensino nas universidades. Não há indicações de que sejam prejudiciais. Como se sabe, a lei, que tem a ver com as universidades e os institutos técnicos, prevê reservas de 50% de vagas a estudantes de escolas públicas e ninguém diz que estão retirando oportunidades do estudante de escola privada. O argumento só é utilizado contra a cota de estudantes negros, o que dá bem a dimensão eivada de visão racista.
Entre 2012 e 2014 se formaram 133 advogados negros na UFRGS. É dado que indica mudança?
É informação importante. Mas continuam vigorando critérios que tendem a desqualificar profissionais negros no mercado de trabalho. Por isso adotamos a reserva de vagas nos concursos públicos da administração federal com o objetivo de eliminar o que ainda existe de barreira aos lugares mais valorizados. Agora, a mudança da mentalidade ainda é uma tarefa da sociedade civil. É no campo do debate político que o racismo pode ser enfrentado de modo mais efetivo.
Empresas brasileiras já demonstram preocupação com a diversidade?
Eu estive recentemente no fórum de desenvolvimento econômico inclusivo, da Secretaria de Igualdade Racial da prefeitura de São Paulo, com a participação de representantes de corporações multinacionais que desenvolvem trabalho de promoção da diversidade. É impressionante ver o número reduzido de interessados. Menos ainda são as empresas brasileiras com essa preocupação. Há no Brasil um campo imenso a se trabalhar, do ponto de vista da inclusão. Pelo fórum será possível mapear as características dos programas de diversidade das empresas e ver como o governo pode operar com estímulos voltados à iniciativa, essa é uma agenda da Seppir.
Há multinacionais que adotam programas de diversidade em seus países e não fazem o mesmo no Brasil?
Sim, as automobilísticas, principalmente. Não há relação de como operam lá fora e aqui. Existem outras que repetem o padrão da matriz, de trabalhar a diversidade, como é o caso do Walmart e da Coca Cola, mas eu não quero particularizar.
Existe democracia com exclusão?
Nós vivemos por muito tempo com a ideia de construção de uma democracia sem levar em conta o racismo. Quem rompeu com o modelo foi o movimento negro, que defendeu a inclusão do negro no processo político ou não seria democracia alguma. Do mesmo modo, o desenvolvimento do Brasil também não levou em conta as diferenças de inserção econômica e social entre grupos raciais. Temos visto o preço que o país paga por ter negado à sua maioria negra as oportunidades na educação, na formação profissional. Hoje se aponta uma escassez de profissionais no mercado que poderiam alavancar o desenvolvimento. Não se pode desvincular a escassez de hoje à exclusão imposta na nossa história.
A senhora fez pós-graduação em sociologia em Michigan, nos Estados Unidos, e uma de suas conclusões é que os americanos não precisam gostar dos negros, mas cumprem as leis.
Isso tem a ver com a operação do racismo em diferentes sociedades. No caso brasileiro, há uma maioria de negros. Ninguém vai se livrar da presença da vizinhança. Por isso aqui foi preciso desenvolver mecanismos muito mais sofisticados. Porque a convivência entre brancos e negros é inevitável. Nos Estados Unidos é o contrário. Estabeleceram um padrão de segregação espacial bastante definido, e também outros tipos de segregação, porque se tratava de manter sob controle uma parcela minoritária da população. No momento em que as regras da segregação foram rompidas, e os negros passaram a participar de vários setores da vida social, não havia de parte das pessoas uma experiência de convivência entre brancos e negros. E de certa forma se manteve assim: olha eu não gosto de conviver com pessoas negras e não vou fingir. Mas as pessoas são obrigadas a se relacionar com o outro naqueles espaços compartilhados, na escola, no trabalho. No Brasil, não. As pessoas dão tapinha nas costas, desconsideram a sua opinião, menosprezam a sua contribuição em processos coletivos. Talvez para uma pessoa que tenha vivido no Brasil seja mais fácil navegar no sistema americano. Cada tipo de racismo coloca um desafio diferente
Não se tem noção dessa maioria aqui no Sul.
Exatamente, mas os negros são 55% no país.
Qual o tamanho da classe média negra na estrutura brasileira?
Ainda não temos dados que digam afinal o que é classe média pelo porte da renda. Mas em cerca de 40% da população que ganha entre dois e cinco salários mínimos per capita a presença negra hoje é muito maior do que em anos anteriores. Houve, sim, um crescimento significativo do negro nas classes de renda intermediária.
Que ações existem para trabalhar a imagem do negro no país?
A Seppir trabalhou junto ao Ministério da Cultura para instituir editais voltados a produtores culturais e artistas negros, embora seja algo que desde 2012 o ministério tem feito. Uma segunda providência é o apoio ao que chamamos de mídia negra. Recentemente realizamos um seminário e é impressionante a quantidade de jovens negros que atuam em redes sociais com produtos interessantes como revistas e blogs e que travam uma batalha por uma representação mais honesta e mais verdadeira dos negros. O plano era abrir uma linha de financiamento a essas iniciativas.
Existe alguma iniciativa na área da televisão?
Temos um acordo com a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que resultou no lançamento de uma novela angolana, chama-se Windeck. A novela apresenta todos os cânones de um folhetim, é protagonizada por atores negros. A ideia é sugerir um maior protagonismo negro a outros programas da televisão brasileira.
Como foi o desempenho dos candidatos negros nas últimas eleições?
Pela primeira vez, o Tribunal Superior Eleitoral incluiu o quesito cor e raça dos candidatos e isso vai criar a possibilidade de analisar melhor a situação brasileira. Mas existe uma participação muito significativa de candidatos negros, principalmente homens. O problema é a taxa de sucesso dessas candidaturas. Homens brancos eram cerca de 40% das candidaturas de 2014. No Congresso Nacional, eles são mais de 70% dos eleitos. Já com relação aos candidatos negros, essa pirâmide se inverte: há mais candidatos e menos eleitos.
Por que os candidatos negros não se elegeram?
Há vários fatores, mas a resposta mais simples é a falta de dinheiro. Além disso, as candidaturas negras não são as priorizadas pelos partidos políticos. São pessoas que não fazem parte das redes por onde o dinheiro circula. Segundo relatos de muitos, tivemos uma das eleições mais financeirizadas dos últimos anos, o que provocou o insucesso de muita candidatura importante, de negros e de quem atua com a agenda mais geral dos direitos humanos. Foi uma devastação.
Estão incluídos aí os representantes comunitários?
Sim, muitos deles, porque não têm os recursos necessários numa candidatura nem o capital político para o qual se dá valor hoje. Política dos movimentos sociais e das associações comunitárias ainda é considerada uma política com “p” minúsculo. O capital político que o negro possui está sendo cada vez mais desvalorizado. Uma candidatura hoje vale mais pelos recursos do que pela inserção política.
Nem os evangélicos negros conseguiram se eleger em 2014?
Bem, ao mesmo tempo em que as candidaturas identificadas com o movimento negro não conseguiram se eleger, vários candidatos negros vinculados às comunidades evangélicas tiveram sucesso. Vai aumentar muito na Câmara Federal a presença negra ligada à religião evangélica.
Vai mudar o perfil dos poucos negros eleitos?
Sim, agora esses eleitos evangélicos estão ligados a uma trajetória política que foge daquele modelo de luta contra o racismo.
Não é o eleitor que mais se beneficiou das políticas públicas dos últimos anos?
É verdade. Ele foi extremamente decisivo na eleição presidencial. O Instituto Patrícia Galvão, que é uma organização feminista que trata de comunicação, elaborou um estudo das intenções de voto na eleição presidencial tomando os dados desagregados por raça. É interessante observar, por exemplo, que o eleitorado negro, composto por 55% do eleitorado brasileiro, deu a primeira demonstração de virada da presidente Dilma sobre Marina Silva no início de setembro. A retomada da dianteira da presidente foi reflexo imediato da reação do eleitorado negro. Por isso, considero que nós tivemos muito mais importância nessa eleição do que em todas as outras, até pelo acesso à informação. Do mesmo modo, no segundo turno, os especialistas disseram que a definição teria sido feita pela camada de dois a cinco salários mínimos, o que é 40% do eleitorado, na faixa de renda que resultou desses processos de mobilidade recentes, onde a presença negra é majoritária. Já o padrão para com as eleições proporcionais é outro completamente diferente, que ainda precisa ser analisado.
Qual a sua leitura dos casos de racismo de eclodiram no país em 2014, especialmente no futebol brasileiro?
O que ocorre é o resultado de uma transição em que vive o país, do ponto de vista social. Numa sociedade em que diferentes setores experimentaram mobilidade social, e os negros estão no centro disso, o que acontece é o deslocamento das identidades raciais. A suposta superioridade se mostrou absolutamente falaciosa. Existe um branco que se percebe, por exemplo, como alguém que perdeu o espaço simbólico na sociedade. Acaba tratando o negro como uma ameaça à superioridade que ocupava. E as pessoas cada vez mais demonstram os seus sentimentos mais perversos em relação à pessoa negra. Não percebem que a inclusão é positiva para a sociedade, como algo essencial para o fortalecimento da democracia. Só veem o seu espaço individual ameaçado, e se manifestam contra isso com toda a perversidade e sem as amarras da etiqueta da democracia racial, porque é isso: a democracia racial virou cinzas.
A senhora pode falar mais sobre essa antiga democracia racial?
Ela impunha na sociedade um determinado tipo de etiqueta, havia coisas que se podia dizer, manifestar, então está havendo uma reação a isso.
É o que está acontecendo no futebol?
Especificamente no que se refere ao racismo no futebol tem sido interessante que os casos mais rumorosos tenham partido do Rio Grande do Sul.
Como a senhora viu o caso do goleiro Aranha?
Eu considero a postura do Aranha das mais dignas, de uma coragem pessoal muito grande, com superioridade moral. Ele foi capaz de se colocar acima de tudo. Foi um exemplo primoroso, tenho uma grande admiração pela forma altiva como ele reagiu, a ponto de fazer com que as instituições tomassem uma atitude. Porque o caso acabou tendo, do ponto de vista da Justiça Desportiva, um desfecho inusitado. O episódio do árbitro gaúcho (Márcio Chagas) também é louvável, porque ajudou a reação dos demais. Talvez não tivéssemos um Aranha com toda aquela força se o árbitro Márcio Chagas lá atrás não tivesse reagido. As reações são assim, em cadeia.
Estamos dando os primeiros passos para a punição pelo racismo?
O Judiciário parece atrasado, ainda precisa suavizar as suas decisões de acordo com as manifestações da sociedade. Estava lendo um estudo sobre julgamentos de casos de racismo em tribunais de primeira instância entre 2007 e 2008. A conclusão é de que apenas 40% dos processos foram considerados procedentes. Ou seja, temos aí uma magistratura com dificuldade de reconhecer racismo como crime. Estamos falando dos casos que conseguiram avançar adiante da delegacia, fora os que se perderam pelo caminho. Mas hoje se discute mais racismo do que antes, sem dúvida. O que o movimento negro defendia há mais de 40 anos, que era transformar o racismo em assunto nacional, hoje é uma realidade.
Jones Lopes da Silva
Acesse no site de origem: “Havia quem me indicasse o elevador de serviço”, lembra ex-ministra negra de época em que viveu no RS (Zero Hora, 17/01/2015)