(Negro Belchior/Carta Capital, 19/01/2015) As denúncias de abusos e violências ocorridos na USP viraram rotina na Universidade mais elitizada do país. Estupros, assédios, trotes e violações dos direitos humanos ocorridos no ambiente universitário trouxeram à tona um debate tão antigo quanto necessário e urgente sobre a função social desta instituição e seu compromisso ético com a sociedade. Essa é também a avaliação de Mônica Gonçalves, ativista negra e estudante de Saúde Pública na USP, uma das mulheres que sustenta as denúncias de violência e promove a luta por inclusão de negros na instituição. Para ela a USP não é apenas o palco, mas é também a promotora de diversas violações de direitos. Leia seu artigo:
Por Mônica Gonçalves
Violência contra mulheres, contra LGBTs e contra os negros são recorrentes na Faculdade de Medicina da USP e em toda a Universidade de São Paulo. Não são casos isolados nem se trata “apenas” de xingamentos, insultos verbais ou ações simbólicas – o que já não seria apenas, pois as consequências, em última instância, são sempre materiais. Mas nem essa “relativização” pode ser feita: a USP tem sido palco e mentora (sim!) de atos – criminosos – como estupro, racismo e violações aos direitos humanos de toda ordem.
Certamente que muitos dirão: pode até ser palco, mas, mentora? Explico: a gravidade foi tanta que aqueles sobre quem essas violências incidiram decidiram se pronunciar. Rompendo o silêncio, recorreram à universidade. Para se restringir o relato de dois casos, podemos citar o estupro, em que a resposta da apuração promovida pela universidade foi “a culpa é do álcool”. Em um dos casos de racismo, a resposta foi: “somos contra”. Ressalte-se que nem a palavra ‘racismo’ foi citada na devolutiva, onde constavam rodas de samba promovidas na faculdade para justificar seu posicionamento contrário ao racismo. Pasmem, essa foi a resposta institucional.
Quando a maior universidade da América Latina, responsável pela grande parte da produção cientifica do país, referência em toda o mundo, apresenta esse tipo de resposta, mostra que os alicerces que a sustentam não são apenas suas bases materiais, seus números, seus campi, o número de docentes que a compõe, quanto nela se produz. Esse tipo de resposta evidencia o caráter político da universidade, seu padrão ético. No caso da USP, revela que esses alicerces estão totalmente corrompidos – mantendo a analogia, não seria exagero dizer que está por desabar.
A USP, suas entidades e representantes optam por manter-se isentos, numa posição de isonomia falaciosa que só atende aos interesses dos que dessa falácia se beneficiam. Optam pela manutenção da imagem, da tradição. A tradição nas instituições tem uma função: fazer com que os modos, as normas, os costumes se mantenham os mesmos ad eternum. A tradição existe pra impedir que o novo se apresente, que a transformação se dê. Na USP e na Faculdade de Medicina, ela tem uma função subjacente maior: conservar privilégios, fazer permanecer desequilibradas relações de saber, perpetuar o exercício pernicioso de poder de pequenos grupos sobre outros, excluir totalmente as possibilidade de que todos possam fruir daquilo que, embora construído e mantido coletivamente, está apropriado por muito poucos.
Quando permite que essas violações aconteçam, sem adotar posições e medidas concretas acerca de violências e crimes, a universidade passa a ser mentora. É mais que ser conivente, porque fere os pressupostos ético-filosóficos sobre os quais se edifica, fere toda a construção ideológica-epistemológica acerca da educação e sua função social no país – construção a que a universidade deveria estar constitucionalmente submetida.
Faço coro a esses que cobram respostas com mais “hombridade” por entender que a universidade deve prestar contas à sociedade, representá-la, atender às suas demandas, e jamais pactuar com práticas que subjugam sujeitos humanos. Audiências públicas ocorreram para apurar os fatos, culminando na abertura de CPI. A grande motivação foi a predominância de dois discursos: o explícito “eu não sabia” e seu par dialético velado “eu não me importo” – que só pode ser acessado nos grupos secretos, mas, obviamente, pode ser revelado aos que acreditam que a ação seja o critério da verdade. Falamos de machismo, riram; falamos de opressões LGBT, riram; falamos de racismo institucional, riram; falamos de cotas, riram. Riram? Riram, e riram alto. Sobre as cotas, vale se debruçar.
A USP tem sido pioneira em pronunciamentos midiáticos e pesquisas contrárias a essa medida constitucional. Contrariamente às instituições que adotaram a medida e vêm publicizando os resultados positivos da experiência, a exemplo da UFRJ e UnB. A USP – que se recusa veemente a sequer debater o assunto – faz o contrário. Estranho? Não. E então mudou-se a estratégia: falou-se de branquitude. Riram; falou-se de direitos humanos. Riram. O riso cínico da instituição poderia revelar que são pouco empáticos, ou mesmo pouco dotados de conhecimentos e noções sociológicas simples. Conforme a fé na ciência, poderia-se acreditar se tratar de caso psiquiátrico em que há supressão ou falseamento da realidade.
Sofressem alguns de ingenuidade, poderiam acreditar que se trata até déficit de inteligência. Não sendo o caso, resta compreender que a negação e os risos são mecanismos que sustentam os privilégios dos que lá estão, lhes são convenientes por legitimar que nós negros, por exemplo, continuemos do lado de fora da instituição; dentro, no máximo, limpando os prédios por onde passam deixando o rastro de seu racismo. A nós, a tradição não interessa. Interessa a instituição de uma nova ordem, onde mulheres estejam representadas, onde os casais homossexuais possam caminhar livremente, onde os negros possam ocupar os espaços concretos e simbólicos que construíram, embora deles tenham sido alijados.
O momento é importante: a indignação da sociedade em geral em relação a USP mostra que vem percebendo que esse espaço é seu, que deve intervir sobre ele. Apropriar-se dela, do que nela se passa é o motor que a tornará democrática, fazendo que seu papel seja cumprido. Não esperemos isso dos que lá estão. Pela primeira vez vislumbro possibilidades reais de intervenção nesse espaço que, quanto mais se fecha, mais adoece, mais se cronifica. Vislumbro o dia em que a universidade será campo de combate a violências, não de sua reprodução, em que não será machista nem homofóbica; vislumbro principalmente o dia em que nós negros estaremos lá nos espaços de poder.
Aos que lá estão rindo, que assim sigam, cientes de que “rir de tudo é desespero”, temerosos pelo dia em que esse farto banquete que é a universidade não será apreciado somente entre os seus.
Acesse no site de origem: “A USP é responsável pelas violações que ocorrem no campus”, por Mônica Gonçalves (Negro Belchior/Carta Capital, 19/01/2015)