(O Globo, 08/03/2015) No episódio de ‘fetostentação’ na internet, mulheres exibiram a barriga e negaram o ombro às que estão encurraladas pelo dilema
É Dia Internacional da Mulher — data instituída há um século — e o mundo sabe que nenhum dos 189 países signatários do pacto pela igualdade de gênero triunfou. Chefe da agência da ONU sobre o tema, Phumzile Mlambo-Ngcuka avisou, anteontem, que uma menina nascida no ano da graça de 2015 vai completar 50 de idade até ter as mesmas chances que um homem de se tornar chefe de Estado. Se ambicionar o topo de uma grande empresa, vai esperar oito décadas. A desigualdade no mercado de trabalho abarca quase todas as carreiras e nações. Em tantas outras, há restrições à educação formal das meninas. E o debate sobre direitos sexuais e reprodutivos empacou numa barreira religiosa que desafia a laicidade. Por isso, neste 8 de março, precisamos falar sobre aborto. É a agenda interrompida, em que valores morais importam mais que saúde pública.
O bloco das grávidas orgulhosas nem esperou o carnaval chegar para desfilar. Dias antes da folia, promoveram sem pudor a “fetostentação” no Facebook. Mulheres que tomaram decisões sobre o próprio corpo usaram a internet para interferir na autonomia alheia. Atuaram numa campanha equivocada, porque sepultaram a possibilidade de diálogo com amigas, irmãs e filhas encurraladas por um dilema sempre dramático. Mostraram barrigas e bebês, esconderam o ombro.
Posaram de donas da verdade alheia. Não são. Como tantas outras que trabalham ou estudam, estão desempregadas ou não foram à escola, são mulheres. Têm companheiros amorosos, vivem com crápulas ou se enganaram com o par. Mas julgam sumariamente as semelhantes que tropeçaram no dia e na hora do sexo e resolveram corrigir o erro da forma que acharam apropriada.
A mulher que interrompe uma gravidez vai conviver com os próprios valores, dogmas e consciência. Não precisam das barrigas acusatórias, mas de uma sociedade que as respeite, acolha e assista. O debate do aborto extrapola o contra ou a favor. É mais complexo, porque envolve a liberdade de decidir sobre os próprios corpo e futuro. Deveria ser direito da mulher fazer isso, sem pôr a saúde em risco nem alimentar redes criminosas de contrabando de remédios e clínicas clandestinas.
O pelotão das barrigudas se soma aos batalhões de parlamentares inquisidores, namorados indiferentes, familiares ausentes. Associa-se a argumentos rasos que se prestam a criminalizar outras mulheres. Sob fotos sorridentes, essas mães escrevem frases sobre a alegria da gestação e do parto; exibem a beleza e a saúde das crias.
Não dão palavra sobre a quadrilha que, em agosto passado, levou Jandira Magdalena dos Santos Cruz para uma clínica de aborto, na Zona Oeste carioca, matou-a e incinerou o corpo. Tampouco falam dos homicidas de Elizângela Barbosa, abandonada em Niterói com um tubo plástico no útero, em setembro de 2014. Não tratam do ambulante que vende comprimidos de Cytotec, proibido no Brasil, sob o céu da Saara, no Centro do Rio. Ignoram a moça de 19 anos que um médico de São Bernardo do Campo (SP) entregou à polícia, mês passado. Ela fora ao hospital por se sentir mal após tomar o abortivo.
São mulheres que não refletem sobre um problema de saúde pública que envolve de 600 mil a 850 mil brasileiras por ano, segundo reportagem do GLOBO de setembro de 2014. O aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país. Causa mutilações e esterilidade. As grávidas da web empobrecem o debate. E partem para o próximo post.
Acesse o PDF: É preciso falar sobre aborto, por Flávia Oliveira (O Globo, 08/03/2015)