Conservadorismo e bancada evangélica freiam igualdade de gêneros, diz governo

09 de março, 2015

(O Globo, 09/03/2015) Em relatório à ONU, Secretaria de Políticas para Mulheres detalha barreiras no caminho dos projetos voltados para o tema

O aumento do conservadorismo no Congresso, bem como a forte presença e intervenção da bancada evangélica, são as principais dificuldades para a igualdade de gêneros no Brasil. A crítica é assinada pela Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) da Presidência e consta no relatório do governo brasileiro obtido pelo GLOBO e enviado à Organização das Nações Unidas (ONU) para discussão na 59ª Comissão sobre o Estatuto da Mulher, que será iniciada hoje, em Nova York.

Ontem, do Chile à Turquia, passando por Rússia e Venezuela, o Dia Internacional da Mulher foi marcado por uma série de marchas e protestos, reivindicando as mesmas condições de vida e acesso ao trabalho proporcionadas para os homens. Um dos maiores protestos foi a campanha “Not there”, nos EUA, na qual o rosto de figuras femininas foi apagado de outdoors, capas de revistas e portais de mídias sociais.

As discussões na ONU vão relembrar o documento “Plataforma de ação de Pequim”, elaborado em 1995. O encontro listou 12 pontos prioritários de trabalho — Mulheres e pobreza; Educação e capacitação; Saúde; Violência contra a mulher; Conflitos armados; Economia; Mulheres no poder e na liderança; Mecanismos institucionais para o avanço das mulheres; Direitos humanos; Mídia; Meio ambiente e direitos das meninas. Representantes de 193 nações apresentarão documentos relatando avanços e dificuldades no cumprimento de cada quesito. O relatório final do chamado “Pequim+20” será divulgado em setembro.

O governo brasileiro afirma que o país não retrocedeu em políticas relacionadas à construção da igualdade de gênero e empoderamento das mulheres. No entanto, em razão da persistência da cultura sexista, misógina, racista e patriarcal, a SPM ressalta que há “em diversos setores da sociedade, incluído o Congresso Nacional, o aumento do conservadorismo em discursos e pautas em discussão, bem como a forte presença e intervenção das bancadas religiosas, em particular evangélicas, em temas caros aos movimentos feministas e de mulheres”. E cita como exemplo o caso do projeto de lei sobre a proteção integral do nascituro, que chegou a ser discutido até o ano passado.

“Outro exemplo dessa onda conservadora foi a exclusão de conteúdo sobre igualdade de gênero do Plano Nacional de Educação (PNE). O projeto de lei original previa a igualdade de gênero como um princípio ou diretriz do PNE, porém, como resultado de diversas mobilizações contrárias, o tema foi retirado”, diz o documento. Segundo a SPM, em 2011 foram aprovadas 17 leis relacionadas à promoção da igualdade de gênero; em 2012, cinco; e em 2013, seis.

Apesar da dificuldade com o Legislativo, Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil, afirma que o país teve grandes avanços no tema nos últimos anos.

— O Brasil teve avanços importantes, como a própria criação da Secretaria de Políticas para Mulheres (em 2003). Também tivemos programas sociais com impacto importante na vida da mulher, principalmente o Bolsa Família. Os recursos públicos com foco na redução da pobreza têm aspecto muito positivo em criar condições para o empoderamento das mulheres — afirma Nadine.

Outro motivo de comemoração é uma lei que será assinada hoje pela presidente Dilma Rousseff, que classifica o assassinato de mulher como um crime hediondo e sujeito a aumento de pena. O Brasil é o sétimo país do mundo com maior taxa de homicídios de mulheres. É registrado um caso a cada duas horas.

— Achamos muito importante nomear esse crime hediondo para que a Justiça e a população entendam que essas mulheres são assassinadas por serem mulheres — explica Nadine. — E, também, para haver investigação apropriada e impacto na reparação e na sanção, além da prevenção.

A representante da ONU, porém, ressalta que as políticas nacionais existentes, como o Plano Nacional de Política para Mulheres, elaborado em 2013, ainda precisam ser completamente implementadas.

FEMINISMO NA PRÁTICA

Mesmo ocupando todo o seu tempo com os afazeres domésticos e sem conhecer bem o que quer dizer a palavra feminismo, Márcia Maria de Jesus dos Santos, de 36 anos, é conselheira e incentivadora de suas amigas e diz que sua qualidade de vida melhorou muito nos últimos anos. Evangélica, depois do terceiro filho, resolveu desobedecer a Igreja Assembleia de Deus e passou a usar preservativo:

— Mesmo usando, vieram todos os outros. Não sei o que aconteceu. A Igreja diz que está na Bíblia que tem que reproduzir, que não pode usar essas coisas. Mas eu, particularmente, aconselho muito as meninas que estão se casando hoje a se cuidarem. Hoje, para a pessoa ser alguém, precisa ter estudo. Falo isso para meus filhos — conta Márcia, que não completou o ensino médio.

Casada há 18 anos, Márcia recebe pelos cinco filhos, de 17, 15, 13, 12, 9 e 3 anos, R$ 294 do Bolsa Família, há três anos. Além disso, cuida de uma criança duas vezes por semana para complementar a renda com mais R$ 300. O marido é folguista e, no total, a renda da família moradora da Favela de Paraisópolis, Zona Sul de São Paulo, é de cerca de R$ 1.800 por mês. No entanto, diz que a decisão de não trabalhar fora foi dela.

— Tive meus filhos um em cima do outro. Carregava os dois de uma vez, um em cada braço, fiquei muito tempo sem cuidar de mim. Meus filhos são tudo na minha vida, mas minha liberdade acabou — lamenta. — Um dia, parei e vi que eu tinha que me cuidar. Preciso de mim, tenho que me sentir bonita.

MARCHAS NO RIO E EM SÃO PAULO

No Rio, três movimentos tomaram ontem a Avenida Atlântica, em Copacabana, na Zona Sul da cidade, por conta do Dia Internacional da Mulher. A Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto estendeu um bandeirão de cinco metros na areia e lembrou que, de acordo com estimativas, uma em cada cinco mulheres já realizou aborto.

— Lidamos com várias aberrações na legislação — protesta Rogéria Peixinho, coordenadora do movimento. — O Estatuto do Nascituro, por exemplo, pode dar direito de paternidade a um estuprador. Se ele não tem condições de sustentar a criança, esse papel cabe ao Estado. É a legitimação de um crime.

O bloco Mulheres Rodadas, que reuniu cerca de 1.500 pessoas nas ruas da Zona Sul no carnaval, levou música, grafiteiros e mulheres de minissaia ao calçadão.

— Se a mulher está de minissaia e é vítima de um assédio, parece que a culpa é dela — condena a jornalista Débora Thomé. — Ninguém diz qual deve ser o tamanho do short de um menino durante a aula de educação física. Não podemos considerar que só o homem pode ter o controle do corpo, já que ele é o mais forte.

Débora lembrou o caso da estudante T., de 16 anos, molestada dentro de um ônibus a caminho da escola, quando usava o uniforme tradicional das normalistas — saia de pregas, meia e camisa social. A adolescente comandou uma caminhada pela praia, que reuniu cerca de cem pessoas.

— Pensei que não teria apoio de ninguém, que seria vista como uma tadinha. Aconteceu o contrário — comemora. — O Dia da Mulher ganhou um novo significado para mim.

A menina foi resgatada pelo pai, o taxista Marcus André Figueiredo, e o acusado, Severino Crispin, foi preso por policiais militares. Para Figueiredo, que também participou da caminhada, o episódio pode ser um marco na luta pelos direitos da mulher:

— Uma condenação como esta traz esperança. Mostra que uma mulher deve ser respeitada, usando saia, calça ou bermuda. Estamos engajados no combate à violência sexual — destaca. — Minha filha não mudou a rotina. Mostrou como soube superar o que aconteceu.

Em São Paulo, cerca de três mil mulheres se reuniram na Avenida Paulista, em uma manifestação que defendia, entre outras bandeiras, o fim da violência contra a mulher, a igualdade salarial e o Estado laico. Uma jovem nua espalhou mensagens espalhadas pelo corpo, chamando atenção para o debate sobre o aborto.

Juliana Granjeia e Renato Grandelle

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