Estudo sobre romances brasileiros aponta pequena presença de personagens negros

18 de abril, 2015

(O Globo, 18/04/2015) Expostos na recém-concluída pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”, realizada na Universidade de Brasília (UnB), sob coordenação da professora Regina Dalcastagnè, os números impressionam. O trabalho, um levantamento de todos os romances publicados por algumas das principais editoras brasileiras (Companhia das Letras, Record, Rocco e Objetiva/Alfaguara), aponta que 96% dos autores e 79% dos personagens são brancos.

— A sociedade brasileira é racista. É o racismo que distorce nossas relações, que dificulta a presença, a visibilidade e a valorização dos negros em todas as instâncias de representação — avalia Dalcastagnè. — E a literatura pode reforçar, e mesmo legitimar, o discurso racista, replicando sua ideologia, vinculando as múltiplas experiências dos negros exclusivamente à violência e à criminalidade.

Mais que a ausência dos negros no romance brasileiro, portanto, a professora chama a atenção para a forma como eles aparecem nas obras (foram analisados 549 livros, de 304 autores diferentes). Há a repetição de papéis estereotipados, o pouco destaque (“são muito mais coadjuvantes que protagonistas”) e a raríssima ocorrência de negros narradores (as personagens não têm, assim, “a possibilidade de dizer sobre o mundo que as cerca”, explica Dalcastagnè).

— O problema não é termos personagens negras que são bandidos, drogados etc., o problema é que essas sejam praticamente as únicas possibilidades de existência dentro de um conjunto imenso de representações literárias. É nesse conjunto que os negros, e ainda mais as mulheres negras, são invisibilizados ou estereotipados — ressalta. — O que nossas pesquisas vêm constatando é que falta à literatura brasileira contemporânea, como os números do levantamento sobre os romances indicam de maneira eloquente, incorporar as vivências, os dramas, as opressões, mas também as fantasias, as esperanças e as utopias dos grupos sociais marginalizados, sejam eles definidos por classe, por sexo, por raça e cor, por orientação sexual ou por qualquer outro critério.

PROBLEMA DE REPRESENTAÇÃO

A presença limitada de personagens negros na literatura brasileira acaba gerando um problema de representação — retirando dela as nuances e reforçando os estereótipos.

— Como são tão poucas, elas acabam se tornando, quando aparecem, não apenas indivíduos possíveis, mas representantes de um grupo inteiro — nota a professora. — Isso não acontece com as personagens brancas, especialmente as masculinas, que são tantas e tão variadas que se constituem sempre, cada uma delas, como “únicas”. O branco criminoso ou viciado está ao lado do branco médico, do branco escritor, do branco comerciante. Já as personagens negras não têm essa variedade, sendo fixadas em poucas ocupações: são os traficantes, as empregadas domésticas e prostitutas. Essa é a estereotipagem (que se revela em outros dados, como o que mostra quatro vezes mais ocorrência de dependência química entre personagens negros, em comparação aos brancos).

Questões de raça e gênero se cruzam no levantamento, como Dalcastagnè deixa transparecer em sua fala sobre as mulheres negras. A pesquisa — cuja primeira fase cobriu entre 1990 e 2004, e já havia sido apresentada — mostra que 71% dos escritores e 60% dos personagens são homens. Economicamente, 80% pertencem às camadas privilegiadas.

— Nossa literatura, de um modo geral, é produzida por e destinada à classe média. E a classe média brasileira, que é branca e embranquecida, não olha para os negros, não se interessa por eles, não os imagina, não cede espaço para eles, não fala deles, a menos que eles estejam apontando uma arma para suas cabeças, ou ameaçando suas vagas nos bancos universitários, com a adoção de cotas.

CONCEIÇÃO EVARISTO E ANA MARIA GONÇALVES SE DESTACAM

Num cenário no qual a representação do negro é reduzida a padrões carentes de complexidade, Dalcastagnè destaca dois romances por suas “diferentes opções de enfrentar a ausência da personagem negra em nossa literatura”: “Um defeito de cor” (Record), de Ana Maria Gonçalves, e “Becos da memória” (Pallas/Mulheres), de Conceição Evaristo:

— O primeiro está no corpus da minha pesquisa. O segundo não — esclarece, por e-mail. — O fardo carregado pelas personagens negras a que me referia antes é, sem dúvida, compartilhado pelos/as seus autores/as, muitos/as deles/as negros/as também. Afinal, há sempre uma tensão presente nesse processo, um conjunto de escolhas e decisões que não abala, pelo menos não necessariamente, o autor de personagens brancas. Para começar, ele/a precisa se contrapor a representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, reafirmar a legitimidade de sua própria construção. Assim, tem de fazer uma série de opções que, além de estéticas, são também políticas. Ana Maria Gonçalves optou por construir uma heroína épica, uma escrava que consegue sua própria liberdade e volta à África, depois de ter acompanhando a luta de seu povo pela liberdade. Já Conceição Evaristo, que também fala de escravidão, vai diluir a história dessa luta em mais de uma dezena de personagens, dando o protagonismo do romance às experiências dos negros e negras de uma favela.

Leandro Lichote

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