Democracia e participação política das mulheres na América Latina, por Sara Beatriz Guardia

19 de abril, 2015

(Diálogos do Sul, 19/04/2015) Apesar da proclamação de conquistas e um papel aparentemente mais notório, a representação política das mulheres na América Latina se manteve praticamente estagnada nos últimos anos. A questão feminina, longe de estar superada, continua em um nível de permanente confronto. Existem grandes diferenças no acesso à educação, uma prática não igualitária na divisão social do trabalho e dos postos de direção; também nas funções e tarefas no interior da família, no espaço público e no acesso a cargos de responsabilidade política.

Os partidos políticos convencionais, afastados cada vez mais dos problemas fundamentais pelos quais atravessam as sociedades latino-americanas, sempre desmereceram o ativismo político das mulheres reduzindo-as a uma plataforma mínima. Enquanto que sua constituição, ideologia e organização têm estimulado e preservado o poder masculino.

Embora o reconhecimento da igualdade de direitos entre pessoas de diferente sexo figura como postulado da reivindicação liberal defendida por filósofos e pensadores, sua tradução jurídica só teve expressão durante o século XX. Obtida a igualdade jurídica, resta a luta por exercer esse direito e chegar a uma plena participação política como cidadãs. Atualmente, o espaço político que as mulheres ocupam não permite apreciar a influência que poderiam exercer através de uma maior participação na consolidação da democracia.

Mas ao falar do continente latino-americano devemos nos referir também à importância que reveste a interculturalidade diante da diversidade de etnias, identidades e culturas que coexistem. Não é o mesmo falar dos direitos políticos das mulheres indígenas que das mulheres profissionais de classe média. Tampouco é possível ignorar que o reconhecimento dos direitos da mulher está relacionado com a defesa da autonomia das pessoas, e que a democratização da sociedade passa também pela ascensão de suas reivindicações ao campo social e político.

Como consequência, a construção de uma nova sociedade e de uma nova forma de assumir a política, implica o desafio de criar novas formas de relação e de resolver as contradições em que a luta das mulheres poderia se converter em uma causa como as outras, quero dizer uma causa politicamente asumida, uma forma de luta contra a desigualdade e a opressão.

Construção de cidadania
O conceito de cidadania tem variado. Enquanto a maneira clássica de entendê-la estava relacionada com a noção originada no discurso da Ilustração que representou o princípio universal de igualdade, fraternidade e liberdade, atualmente não é concebível uma cidadania na qual não estejam incorporados os setores marginais. Este aspecto cobra importância se considerarmos que a democracia liberal nasceu associada a uma economia capitalista de mercado e à aceitação teórica da divisão das classes sociais. A partir disso, originaram-se os quatro modelos de democracia até agora conhecidos: entendendo como modelo “um sistema de elementos que reproduz determinados aspectos, relações e funções do objeto que se pesquisa”2.

O modelo denominado democracia como proteção estava baseado no princípio do estabelecimento de leis que protegessem os cidadãos do abuso do poder. O sistema político devia criar governos que defendessem uma sociedade de mercado livre, ao mesmo tempo em que apoiavam os cidadãos contra a cobiça dos governos. A resolução desse duplo problema guardava relação direta com quem tinha direito ao voto e o mecanismo das eleições. Em sua Teoria da Legislação, Jeremy Bentham defendeu, em fins do século XVIII um sufrágio que excluía os pobres, os analfabetos, as pessoas dependentes e as mulheres. E, embora acreditasse que as mulheres, para compensar seus problemas naturais deviam ter direito inclusive a mais votos que os homens, sustentou que era impossível sugeri-lo por causa dos enfrentamentos e da confusão que a proposta causaria na sociedade.

Em 1820, outro teórico desenvolvimentista, James Mill, propôs em seu artigo intitulado “Do Governo” a necessidade de excluir as pessoas cujos interesses estavam compreendidos nos de outras pessoas, como o das mulheres, incluídos nos de seus pais e maridos. Ou seja, a concepção da política era vista como assunto público, âmbito dos homens e diretamente relacionada com o poder. E tudo o que concernia às mulheres pertencia ao âmbito privado, separado da sociedade e do estado. Por isso o sufrágio feminino só pode ser possível no século XX e depois de uma luta considerável das mulheres.

Para os teóricos da democracia como proteção, o aparato político devia assegurar a responsabilidade dos governantes ante os governados. A proposta de Rousseau consistia em uma sociedade de produtores independentes onde a propriedade privada fosse considerada como um direito individual, e como diz em O Contrato Social, existisse “a igualdade de todos os cidadãos no sentido de que todos devem desfrutar dos mesmos direitos”3. Não obstante, no Discurso sobre as Origens da Desigualdade (1755), assinala que se trata de uma propriedade pequena, pois um direito ilimitado propiciava a exploração e a falta de liberdade. Em todo caso, como as mulheres não podiam ter propriedades produtivas nem grandes nem pequenas, integravam a sociedade civil, mas não eram membros de pleno direito. Além do mais, Rousseau pensava que era necessário mantê-las em situação de dependência porque os julgamentos e opiniões que vertiam estavam enfraquecidos por suas “paixões imoderadas”, pelo qual necessitavam de proteção e guia masculina para enfrentar-se ao desafio da política4. Lógica nada rara nessa época. Segundo Macpherson “um democrata do século XVIII podia conceber uma sociedade de uma só classe e excluir a mulher; da mesma forma que um antigo democrata ateniense podia conceber uma sociedade de uma só classe e excluir os escravos”5.

Corresponde a esse período um notável ensaio intitulado Vindicações dos direitos das mulheres, de Mary Wollstonecraft (1759-1797), obra pela qual ela deveria ser considerada como uma teórica da democracia desenvolvimentista, modelo que surgiu em meados do século XIX, quando a classe operária ganhou maior força e começou a ser vista como uma ameaça para a propriedade; enquanto que por outro lado resultava imoral aceitar a exploração desumana que sofria. Nesse contexto, a democracia devia assegurar o desenvolvimento individual, a liberdade e a igualdade.

Wollstonecraft coincidia com a tese de que a liberdade e a igualdade guardam relação entre si, mas se opunha ao pensamento político tradicional que negava à mulher um papel na vida pública. Em sua opinião, as relações entre os homens e as mulheres estavam fundamentadas em presunções injustificadas, e que sua exclusão da política obedecia a preceitos humanos e históricos6, e não a razões biológicas. Contra a imagem recorrente da mulher como um ser débil, superficial e passivo, Wollstonecraft sustentava que não só era capaz de assumir o desafio político, mas também a liderança, porém a carência de educação e o isolamento doméstico haviam freado seu desenvolvimento como cidadãs de pleno direito.

Posteriormente, foi abandonada a exigência moral porque o desenvolvimento pessoal era insuficiente como proposta, e como consequência os teóricos do equilíbrio propuseram uma democracia como competição entre elites com limitada participação popular. O modelo atual é a democracia participativa que se iniciou como consigna dos movimentos estudantis de esquerda na década dos sessenta, e se difundiu depois entre a classe operária nos setenta, como resultado do crescente descontentamento ante a desigualdade social e econômica. Trata-se de um modelo que abarca mais que a existência dos partidos, sua lógica competição e eleições periódicas, porque inclui a participação direta da sociedade civil organizada. Aponta para a transformação da estrutura organizativa da sociedade para convertê-la em uma sociedade onde não existam exclusões de raça ou sexo. Significa também, uma proposta e uma forma de vida. “Se as pessoas, diz Held, sabem que existem oportunidades para uma participação efetiva na tomada de decisões, é provável que creiam que a participação vale a pena, e que, além disso, defendam a ideia de que as decisões coletivas devam ser obrigatórias. Por outro lado, se as pessoas são sistematicamente marginalizadas e/ou pobremente representadas, é provável que creiam que suas opiniões e preferências raramente serão levadas a sério”7.

Ou seja, para que a democracia participativa se desenvolva, tem que ser concebida e aceita como um fenômeno que, ao mesmo tempo em que inclui questões relativas ao poder ou à reforma do estado, assuma que a reestruturação da sociedade civil é igualmente indispensável. Uma reestruturação em que o princípio de autonomia, que implica a capacidade de todos os seres humanos, homens e mulheres de participar na vida pública e se forjarem como seres livres, possibilite a transformação interdependente tanto do estado como da sociedade civil.

Nos últimos anos, para um importante setor da população a política deixou de ser considerada como um fenômeno praticado exclusivamente pelos partidos políticos e pelos homens. E começa a ser vista como um fenômeno que se encontra presente em todas as relações humanas sejam institucionais, formais ou informais, públicas ou privadas. De fato, as mulheres preferiram em muitos casos aceder à política de fora de um partido, porque não se sentiram suficientemente representadas na opinião pública ou eleitoral.

No início do terceiro milênio, as mulheres latino-americanas se enfrentam a uma situação sumamente complexa, marcada por elementos de mudança em contraposição com a continuidade de velhas heranças. A própria sociedade latino-americana se move saturada de contradições. A profusa migração rural que marcou a década dos sessenta em todos os países da região, agora transcende as fronteiras no que foi denominado de “migração da miséria”. Também já foi descrita esta época como a “era do nacionalismo porque é cada vez maior o número de grupos que se mobilizam e afirmam sua identidade”8. Tradição e modernidade em um contexto de empobrecimento econômico e crise política.

Em todos os países da região, as mulheres pertencentes às zonas rurais têm níveis educacionais muito baixos, deficiente acesso à saúde e menos expectativas de vida. O mesmo acontece com as mulheres de setores marginais urbanos. Se em 1950, a quinta parte da população economicamente ativa estava composta por mulheres, na década de 2000, uma de cada três pessoas da força de trabalho é mulher. Mas se trata de um trabalho em sua maioria informal, mal remunerado, quase insuficiente para sobreviver.

O modelo neoliberal com o qual se pretendeu encarar a crise mediante uma política de ajuste desenhada de acordo com as exigências da comunidade financeira internacional, implantou-se no marco de modos de produção desarticulados, sem reforma do Estado, desemprego, analfabetismo e pobreza. Agregando-se fatos de suma gravidade como o incremento do narcotráfico e da violência social. Não é casual que nos últimos anos se tenham produzido profundas crises políticas no México, Panamá, Peru, Bolívia, Venezuela, Brasil, Argentina, Colômbia, e Chile. Fato que demonstra a fracasso do modelo propugnado pelos Estados Unidos, segundo o qual uma vez alcançada a estabilidade macroeconômica se produziria um sustentado crescimento econômico e estabilidade política. É necessário mostrar que todas as crises da região têm pontos coincidentes, posto que para o enfoque neoliberal a democracia é um conceito exclusivamente institucional e o reajuste econômico não contempla a desigualdade na distribuição da riqueza, e o alto custo social em um cenário de marginalidade crescente, dependência e atraso estrutural9.

A resposta a essas crises de governabilidade convertidas em crises de legitimidade na região, é constituída pelos movimentos, agrupações e forças políticas emergentes. A solução democrática depende, pois, da viabilidade na resolução do problema da representatividade política, dos direitos cidadãos, da igualdade social e da participação popular. O que está em jogo hoje na América Latina é a democracia e a renovação das sociedades civis. No entanto, aqui caberia perguntar se é válida uma democracia assentada em princípios de iniquidade entre os sexos.

Propostas
Em uma perspectiva de gênero, a democracia política tem que ver com a presença das mulheres nas estruturas formais e na formulação de políticas públicas. Se os cidadãos têm direitos e obrigações, então deveriam ser considerados providos de gênero, e isso significa algo mais que igualdade formal. Trata-se de direitos legais, política social e direitos humanos das mulheres. A presença ativa da cidadania como elemento de democratização deve significar para as mulheres a abertura de novos espaços para atuar na esfera pública. Uma nova forma de fazer política relacionada com os princípios de autonomia, igualitarismo e democracia interna. Atualmente os interesses das mulheres não estão representados dentro do Estado em termos de justiça social e equidade; tampouco as responsabilidades na esfera privada são compartilhadas, embora se tenha redefinido, no âmbito político, uma forma de socialização entre as pessoas e um novo imaginário social.

Neste marco, a reforma do Estado se converte em um imperativo para os países da América Latina. Um Estado que possibilite a participação popular com um projeto nacional. Um Estado democrático interventor na economia, especialmente dos trabalhadores e aberto ao controle 10. O que implica aprofundar o que Pablo González Casanova chama de democracia emergente, isto é, una democracia participativa, popular, com a proposta de um desenvolvimento nacional e regional no atual contexto da globalização. Um Estado que descanse, cito a González Casanova, “em um poder das maiorias, um poder que seja pluralista, que seja respeitoso das ideias dos demais, que seja respeitoso das variações políticas, dos universos ideológicos e que aproveite todas as experiências anteriores do projeto democrático e da luta pela liberdade, a justiça social, a independência e a soberania”11. Ou como resumiria Gramsci, a única possibilidade de superar a crise imanente da modernidade é unir ética e política e desenvolver a democracia.

Mas, quando proponho a necessidade da participação política das mulheres não me refiro apenas a sua presença no poder estatal ou legislativo. A relação da mulher em termos de poder e liderança é muito complexa devido a condicionamentos culturais. Segundo Julia Kristeva, uma porcentagem significativa de mulheres que tiveram acesso a postos de direção com as sabidas vantagens econômicas, sociais e pessoais, muitas vezes “se convertem em pilares dos regimes existentes, guardiãs da situação, as protetoras mais zelosas da ordem estabelecida”12.

Tampouco aponto apenas à adequação de uma legislação mais de acordo com os tempos. Nos últimos anos produziram-se mudanças em vários países da América Latina para que os partidos e agrupamentos mantenham uma proporcionalidade nos seus órgãos de direção tanto de homens como de mulheres. No Peru foi estabelecida, em 1997, uma modificação da Lei de Eleições Gerais e Municipais que estabelece que as listas de candidatos devam conter pelo menos 25% de mulheres. À margem dos aspectos positivos da lei e da celebração que provocou, caberia recordar a situação que existe me países onde já se produziram essas modificações; segundo um estudo apresentado por iniciativa da União Interparlamentaria Europeia, há nove anos a porcentagem das mulheres nos parlamentos chegava aos 14%, enquanto que na atualidade é de 11.75%. E é que muitas boas intenções ficam no papel, se não existir uma participação que assegura a mudança da sociedade em seu conjunto.

E me refiro a uma participação ampla, plural, que no marco de sociedades marcadas pela desigualdade estrutural, a coexistência de uma modernidade incipiente com costumes atávicos e tradicionais, significa assumir a participação das mulheres e as relações de gênero com as características particulares que têm atualmente; na qual inclusive a linguagem – que desempenha um papel fundamental na transformação da identidade social dos indivíduos – adquire conotações singulares ao refletir uma cultural patriarcal e machista. Não é casual que Foucault tenha acentuado a relação entre poder e discurso, e que Pierre Bourdieu descreva a existência de um capital linguístico como forma de poder simbólico.

Por tudo isso, não é possível falar na América Latina de democracia, nem de cidadania, e menos ainda de representação política sem mencionar os direitos das mulheres, de uma nova consciência democrática que respeite a diversidade e a pluralidade, e de um pensamento tendente a resolver a contradição atual entre ética e política.

Bibliografia

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* Diretora do CEMHAL e da equipe de colaboradores de Diálogos do Sul, em Lima, Peru – Tradução de Bia Cannabrava

1 Françoise Collin. “Políticas del compromiso y políticas de la verdad”. Revista El Rodaballo. Buenos Aires, 1998, pp. 46-50.

2 Blauberg, Kopnin, Pantin. Breve diccionario filosófico. Buenos Aires, 1972, p. 127.

3 Rousseau. El contrato social. Madrid, 1988, p.76.

4 Held. Modelos de democracia. Madrid, 1991, p. 100.

5 Macpherson. La democracia liberal y su época. Madrid, 1987, p. 30.

6 Wollstonecraft, Vindicaciones de los derechos de las mujeres. Londres, 1982, pp. 257-258.

7 Held, Ob. Cit., p. 312.

8 Kymlicka. Ciudadanía multicultural. Barcelona, 1996, p. 265.

9 Oliver. “América Latina: las enseñanzas de las crisis políticas”. Revista Dialéctica, 1994, p. 89.

10 Ibídem, p. 94.

11 González Casanova, “Paradigmas y Ciencias Sociales: una aproximación”. Revista Dialéctica, 1992, p. 24.

12 Kristeva. Las enfermedades del alma. Barcelona, 1995, p. 198.

Acesse no site de origem: Democracia e participação política das mulheres na América Latina, por Sara Beatriz Guardia (Diálogos do Sul, 19/04/2015) 

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