(Portal Fórum, 26/05/2015) Na hora de relacionar a juventude ao crime, são os meninos que são lembrados; apenas eles. Mas o que acontece com as nossas meninas se forem à prisão mais cedo, como propõe a PEC 171/1993, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos?
Pivete, trombadinha, delinquente, avião, pixote, marginal, elemento. Nomes que denunciam uma sociedade que não sabe tratar adolescentes como adolescentes e evidenciam que na hora de relacionar a juventude ao crime, são os meninos que são lembrados; apenas eles. Mas, se nessa mesma sociedade o crime pode ser praticado por todos – e por todas – o que acontece com nossas meninas se forem à prisão mais cedo, como propõe a PEC 171/1993, que reduz a maioridade penal de 18 para 16? Em um país que ocupa o terceiro lugar no ranking de maior população em situação de prisão, o que acontece se colocarmos nossas jovens em unidades prisionais de adultos, que perpetuam um sistema de morte em que as mulheres pagam duas vezes: por seu crime e por ser mulher?
Como resposta, os efeitos são muitos e são graves. Mas para entendê-los é preciso voltar ao básico, à radiografia própria da cadeia brasileira. E quem vai para a prisão no Brasil? Negro, pobre, jovem, com baixa (ou sem) escolaridade. Agora, passe essa frase para o feminino. Fica tudo igual no encarceramento, então? Não. Ou melhor, sim, mas não deveria.
Embora o perfil das mulheres presas seja semelhante ao dos homens devido às desigualdades sociais, de gênero e raça latentes no país, para as mulheres – negras, pobres, jovens e com baixa (ou sem) escolaridade – é o discurso patriarcal e machista que predomina em todo o encarceramento feminino. Esse fator amplifica tragédias humanas, como explica padre Julio Lancellotti, membro da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e Vigário Episcopal do povo de rua. Entre os exemplos, o padre cita as rebeliões femininas. “O grupo de negociação é bem diferente, nem sempre elas conseguem ser objetivas na hora de fazer as reivindicações, porque não há preparo adequado do sistema carcerário para lidar com rebeliões femininas, entendendo que elas têm sua própria linguagem e formas de se expressar”, explica.
E não pense você que, no cárcere adulto, o dito sexo frágil sofre menos. “A repressão é muito grande, já vi mulheres andando em cacos de vidro, sentadas em colchão na brasa, sem falar de questões de saúde, como a distribuição de apenas dois rolos de papel higiênico por mês para cada mulher, ou mulheres precisando usar miolo de pão e jornal para adaptar um absorvente durante o período menstrual”, relembra o padre.
Assim, se estamos em uma sociedade racista e elitista, em que a pobreza se vincula facilmente à noção de marginalidade e prisão, a masculinização do sistema carcerário prejudica ainda mais a visão que se tem da mulher, tanto nos presídios quanto nas unidades de internação para adolescentes infratoras como a Fundação Casa, no estado de São Paulo. “É comum ouvir pelos corredores comentários como ‘é mais fácil educar meninos do que meninas’, sem falar da relação feita entre delinquência e prostituição. É uma visão muito moralista, que vem da própria Justiça brasileira e se estende a toda a sociedade. Como uma menina pôde fazer isso?”, complementa.
Sim, como uma menina pôde fazer isso?! Vejamos. Parece pouco, mas ainda que apenas 5% dos adolescentes apreendidos em todo o país seja do sexo feminino, é fato que as mulheres têm se tornado cada vez mais vulneráveis à criminalização nos últimos tempos. Por um lado, devido à própria relação de gênero e determinados papéis, como mães, avós, esposas e namoradas que assumem a culpa no lugar dos homens na comercialização de drogas, para ‘proteger o lar’, entre outros casos. Por outro, e em uma esfera mais recente, devido à extensão das mulheres para papéis antes executados apenas por homens, inclusive no mundo do crime, que tem ações contra o patrimônio, roubo, furto e tráfico de drogas como os atos infracionais mais cometidos por quem está nas unidades de internação do país, seja do sexo masculino ou feminino. Aliás, atenção para outro dado, dos cerca de 21 milhões de adolescentes no Brasil, somente 0,10% estavam cumprindo medidas socioeducativas em 2012; destes, apenas 0,013% cometeram crimes contra a vida, segundo a Unicef. E vamos colocar ênfase: neste dado que não dá nem um por cento.
Mas elas sabiam o que estavam fazendo! Repense. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) reconhece que adolescentes entre 12 e 17 anos estão em “condição peculiar de formação e desenvolvimento”, o que significa que todos têm, sim, direitos e deveres, mas que devem ser aplicáveis à sua “idade, desenvolvimento físico e mental, e capacidade de autonomia e discernimento”. Além disso, seguramente, a superlotação, os maus tratos, as humilhações, e uma assistência médica e jurídica precária não irão dissolver questões referentes às mulheres brasileiras em conflito com a criminalidade. Pelo contrário, o despreparo para julgar e receber menores de 18 anos no cárcere deve agravar ainda mais a situação, uma vez que, postas em situação degradante como os atuais presídios no Brasil, elas terão ainda mais reduzidas suas chances de estímulo à reinserção social. Um índice que reforça isto vem do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que aponta que a taxa de reincidência de criminosos no Brasil foi de 47,4% em 2013, enquanto a de menores com passagem pela Fundação Casa, em SP, foi de 12,8% no mesmo período, o que é consideravelmente mais baixo.
Então, só porque é “de menor” merecem ficar impunes? Não é bem assim não….
“No sistema socioeducativo, quando um adolescente é apenado, recebe uma das seguintes punições: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação. A situação se torna mais cruel, pois diferente do que acontece no sistema adulto, os adolescentes não têm possibilidade de progressão de regime de cumprimento de pena e não há definição de tempo a ser cumprido, apenas um prazo reavaliado a cada 6 meses extensíveis a, no máximo, de 3 anos” (ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, 2015)
Vale lembrar que não é exagero falar que “internação” é apenas um eufemismo do ECA para tratar do real encarceramento destas meninas (e meninos). Por isto, é um grave equívoco acreditar que o sistema socioeducativo deve ser substituído pelo sistema prisional, visto que, da forma como ambos se dão atualmente, as violações de direitos do sistema carcerário destinado a adultos vêm sendo reproduzidas até mesmo no sistema juvenil, quando não ampliadas.
Não serve nem para adultas
Não é fato novo que o sistema carcerário brasileiro é pensado e desenvolvido por homens e para homens. A própria estrutura de prisões para mulheres é recente no Brasil; somente em 1941 foi criado em São Paulo, junto ao Complexo do Carandiru, o Presídio de Mulheres, que mais tarde se tornou a Penitenciária Feminina da Capital. Isto é pouco mais do que 70 anos; antes disso, elas eram alojadas em uma parte separada da ala masculina das prisões.
Porém, ao longo dos anos, o número de detentas no Brasil subiu, e muito. Para se ter uma ideia, em cinco anos, a população feminina nas prisões cresceu quase duas vezes mais do que a masculina. Um dado ruim? Terrível. Exceto se você for uma grande empreiteira, cujo raciocínio é o de que prisões são fonte de lucro e se o número de mulheres (e homens) no cárcere aumenta significativamente, quanto menos políticas públicas pensadas para diminuir o número de jovens no sistema carcerário brasileiro, melhor.
Acesse no site de origem: As “piveta”: Reflexos da PEC 171 para as adolescentes brasileiras, por Tatiana Oliveira (Portal Fórum, 26/05/2015)