(Brasil Post, 10/06/2015) Assim com a maioria dos Estados Unidos, assisti horrorizada a Jim Bob e Michelle Duggar, os pais do programa de TV “19 Kids and Counting” (19 filhos e contando, em tradução livre), falando de seu filho Josh, que molestou suas irmãs pequenas. Josh admitiu ter abusado sexualmente de cinco meninas, inclusive suas irmãs Jessa e Jill. Um relatório da polícia recém-divulgado diz que Josh contou para o pai em três ocasiões que havia abusado sexualmente de quatro de suas irmãs e de uma amiga da família.
Mas Jim Bob diz que “não foi estupro nem nada parecido. Foram toques por cima das roupas”. Essa percepção de que toques são menos traumáticos que penetração não é apenas falsa, mas incrivelmente danosa para as vítimas, e ajuda a perpetuar a cultura de culpar as vítimas e de não responsabilizar os culpados. O fato é que crianças abusadas sexualmente sofrem consequências por toda a vida, tenha ou não o abuso envolvido penetração.
Toda vítima tem experiências e respostas únicas, mas os impactos comuns de abuso sexual infantil incluem culpa, vergonha, depressão, distúrbios do sono, dificuldade em confiar, baixa auto-estima, flashbacks, dissociação, transtornos alimentares, abuso de substâncias e dificuldade em formar relacionamentos íntimos.
Como diz a Rede Nacional de Abuso de Estupro e Incesto: “A reação dos amigos e familiares do sobrevivente à revelação do abuso também tem o potencial de desencadear sentimentos de culpa, vergonha e desconfiança, especialmente se esses indivíduos negaram que o abuso estava ocorrendo, ou optaram por ignorá-lo”.
Descrença e minimização por parte da família muitas vezes representam um novo trauma para as vítimas e podem tornar o impacto do abuso muito pior e mais duradouro. Sou uma sobrevivente de abuso sexual na infância. Para mim, a reação da minha família foi tão dolorosa e destrutiva como o abuso em si.
Tinha 15 anos quando revelei ser vítima de abuso sexual por parte de um membro da família – o marido da minha avó. Como acontece com muitas vítimas, a primeira reação foi duvidarem de mim. Minha avó disse que eu estava mentindo e me expulsou de casa. Anos mais tarde, enquanto tentava reconstruir conexões com a minha família, minha mãe finalmente admitiu que ela acreditou em mim e sabia que eu estava dizendo a verdade. Mas ela disse que eu deveria “simplesmente superar”, pois “não é que ele tenha te estuprado ou coisa parecida”.
Essa afirmação de que “na verdade não foi estupro” é uma das piores formas de culpar as vítimas e minimizar o problema. Isso faz com que as vítimas duvidem de seus próprios sentimentos e lembranças e sintam vergonha por estarem tão magoadas.
Na minha experiência, embora seja verdade que não tenha havido penetração (que eu me lembre), fui violada por alguém que amava e em quem confiava – como no caso das irmãs de Josh Duggar. Esse tipo de traição é tão doloroso como um estupro por um estranho, às vezes até mais.
Dois anos depois que saí de casa, fui estuprada por um conhecido na faculdade. Embora nesse caso tenha havido penetração e muito trauma, não senti o mesmo impacto do abuso por parte de meu avô. O ato específico não é tão importante quanto o impacto que ele causa.
De maneira alguma quero minimizar o impacto do estupro por um estranho, conhecido ou qualquer outra pessoa. Toda e qualquer agressão sexual é traumática. A experiência de cada vítima é única, e cada reação será diferente. É impossível dizer qual o tipo de violência sexual é pior ou será mais prejudicial. E não cabe a nós decidir.
O fato é que qualquer toque sexual ou comportamento sem o consentimento de alguém, ou antes que alguém tenha idade suficiente para consentir, é uma agressão sexual, ponto. Todos os culpados devem ser responsabilizados. E todas as vítimas merecem crédito e apoio.
Trabalho com sobreviventes de abuso sexual há 15 anos. E muitos dos sobreviventes com quem converso têm medo de se manifestar, porque ouviram que o que aconteceu com eles “na verdade não foi estupro”. Eles duvidam das suas próprias definições de suas próprias experiências, porque lhes foi dito que eles estão exagerando.
Temos de parar de diluir estupro e parar de dizer para as vítimas que só alguns atos são ruins o suficiente para justificar indignação. Temos de parar de tentar definir a experiência alheia porque simplesmente não queremos — ou não conseguimos lidar com — a verdade dolorosa. Toda agressão sexual é errada, dolorosa, prejudicial e ilegal.
Jessa, irmã mais nova e uma de suas vítimas de Josh, está defendendo seu irmão. Ela afirmou que referir-se a Josh como um molestador crianças é “tão exagerado e mentiroso”. Não importa se Jessa enxerga – ou está pronta para enxergar – seu irmão como um agressor. O fato é que o que ele fez não foi apenas um “erro”, como dizem seus pais, mas foi um crime – vários crimes. Mandá-lo para trabalhar durante um verão não é uma punição adequada. Não vai mudar o comportamento dele. E isso certamente não vai ajudar suas irmãs, e outras vítimas, a se curar.
Não consigo imaginar como deve ser angustiante saber que várias de suas filhas foram vítimas de abuso sexual – e que o perpetrador é o seu próprio filho. Tenho certeza que isso é muito difícil para toda a família Duggar. E imagino que o desejo de defender o seu filho seja forte, como seria para qualquer pai. Mas defender uma criança em detrimento dos seus outros filhos é trágico e inaceitável.
Crianças (e adultos) abusadas ou agredidas sexualmente precisam saber que serão ouvidas, que o abuso não foi culpa deles e que têm o apoio de amigos e familiares. Ter sua experiência validada é um dos passos mais importantes para a cura e sobrevivência. Eu só posso esperar que Jill, Jessa, e as outras vítimas recebam esse apoio de alguém, se não de seus próprios pais, muito em breve.
Para Jessa, Jill e todos os sobreviventes de todas as formas de violência sexual: Acredito em vocês. Não foi culpa sua. E vocês não estão sozinhos.
por Pamela Jabobs
Acesse no site de origem: O perigo do ‘na verdade não foi estupro’ (Brasil Post, 10/06/2015)