(Portal Africas, 22/06/2015) Com apoio de sub-comissões, universidades e movimentos sociais, o documento será entregue em dezembro com objetivo de intensificar a adoção de políticas públicas
A Comissão Nacional responsável por mobilizar e sensibilizar o país para os trabalhos da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra no Brasil (CNVENB), presidida por Humberto Adami, constituída pelo Conselho Federal da OAB – Organização dos Advogados do Brasil, tem o desafio de entregar até o mês de dezembro, um relatório parcial sobre a ampla investigação que pretende relevar as reais condições de um período de mais de 300 anos, quando ocorreu o maior regime de escravidão e tráfico de africanos das Américas.
De acordo com Adami, não se trata de buscar neste momento reparações financeiras, mas sim iniciar um trabalho que além de revelar os atos de violação contra os direitos humanos, busque também a reconstrução de uma nova nação. “Estaremos trazendo ao conhecimento geral, tanto no relatório de 2015 como no relatório final de 2016, um Brasil que não é conhecido de grande parte dos brasileiros. Um Brasil que ficou escondido nas masmorras das senzalas. Um Brasil que não reconhece naqueles que vieram de África e em seus descendentes, o mesmo valor, cujos resquícios desta escravidão persistem até hoje. É a esperança de um dia ter o mesmo padrão de cidadania que os não-negros tem neste Brasil de hoje”, disse.
O trabalho da Comissão Nacional tem se utilizado de acordos de cooperação técnica para ampliar a investigação. Entre os apoios fundamentais está a participação de universidades, que através de pesquisas e teses acadêmicas sobre o tema, têm colaborado para que o resgate da memória, de acontecimentos importantes no período da escravidão, esteja incluída no relatório. “No final, teremos uma nova nação. Um Brasil que vai ter a oportunidade de dar combate aos resquícios da escravidão, que persiste até hoje no nosso meio, e que tem na sua principal modalidade o racismo institucional, naquela memória coletiva que faz o país ter duas categorias de cidadãos. O cidadão de primeira categoria de direitos civis e o cidadão de segunda categoria de direitos civis. Há no país, no momento, uma categoria de cidadãos que não tem direito civis de primeira categoria”, afirma Adami.
Exemplos importantes de parceria estão nos acordos firmados com Universidade Zumbi dos Palmares (SP), com o Laboratório de História da Universidade Federal Fluminense e com o Instituto Federal do Pará que produzirão relatórios que serão incluídos no documento parcial. No âmbito político a Comissão Nacional também conta com a Comissão Especial da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, formada pela Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, que trabalhará com foco municipal.
Os levantamentos começam a revelar dados históricos que a grande parcela da população não tem acesso, mas que são fundamentais para resgatar a memória de um passado que foi apagado da história. Uma das teses revela fatos sobre a escravidão na cidade de Nova Friburgo (RJ). “O trabalho dos historiadores descortinou o mito da suíça brasileira do município, ao descobrir que antes disso houve uma extensa fundamentação escravocrata, especialmente citando o caso do Barão de Nova Friburgo, que promoveu mais de cinco ou seis viagens de carregamentos de africanos em navios tumbeiros, cada um deles com mais de 400 africanos”, revelou.
É possível acompanhar o trabalho da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil pela página exclusiva no Facebook, onde todos podem ter acesso ao levantamento nacional. Uma minuta de cooperação técnica também está disponível e pode ser enviada ao Conselho da OAB, para que as instituições e organizações possam elaborar suas próprias pesquisas.
Em entrevista exclusiva a Áfricas – Agência de Notícias, o presidente da Comissão Nacional da Verdade Sobre a Escravidão Negra no Brasil, Humberto Adami, explica os objetivos dos trabalhos e faz o balanço desta primeira etapa de produção do relatório.
Agência Áfricas – Qual a estratégia de trabalho da Comissão Nacional para desenvolver o relatório parcial que será entregue no final deste ano?
Humberto Adami – O relatório da Comissão Nacional pretende responder três perguntas segundo a metodologia em relação ao crime de escravidão contra a população negra. Considerando que o crime de escravidão é um crime de lesa a humanidade ele é imprescritível, e consta nos tratados internacionais da espécie. A metodologia pretende responder três perguntas: Quais foram os crimes praticados, como foram eles praticados e por quem foram eles praticados. As respostas destas três indagações conduzirão a condenação do estado brasileiro, o responsável pelo crime de escravidão, contra a população negra que foi escravizada por mais de 350 anos. Isto porque com o estado brasileiro uma vez responsabilizado, levará a possibilidade de implementação de políticas públicas que sejam aceitáveis, de forma mais fácil, por parte da população que ainda resiste diante da implementação de politicas reparatórias. A Comissão trabalha para um relatório parcial para dezembro de 2015. Ela está estabelecendo além da Comissão Nacional, Comissões estaduais, onde já foram registradas Comissões no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Belém do Pará, Espirito Santo, São Paulo e Piauí. Outras comissões devem ser instaladas nos próximos dias em todas as seccionais, da OAB. O advogado Marcos Vinicius Furtado, presidente do Conselho Federal tem orientado para que o relatório seja o nosso foco. A Comissão está trabalhando com isso e em breve teremos previsão do relatório parcial trabalhando com a contribuição das seccionais, como também outras subseções estão instalando suas sub comissões, e tem a previsão do acordo de Cooperação técnica com universidades, entidades do movimento social e grupos quilombolas.
Agência Áfricas – Quais as atividades e as pesquisas que estão sendo realizadas nesta primeira fase?
Humberto Adami – As atividades primeiras são os acordos de cooperação técnica que estão sendo absolutamente importantes para aproveitar as pesquisas que já existiam em muitos meios universitários, especialmente sobre a história da escravidão em pesquisas e teses que estavam colocadas nos seus bancos universitários e não tinham chegado ao conhecimento geral. Este material está sendo coletado pelas universidades e tivemos inclusive em decorrência da criação da Comissão no Conselho Federal, o surgimento de matérias no noticiário sobre a história da escravidão. Isto, em desfavor das matérias que até o ano passado, surgiam exclusivamente sobre as cotas raciais nas universidades e cotas no emprego público. Temos ainda as Audiências públicas, reuniões, atos públicos, investigações como por exemplo no Pará, que estão indo a campo e conseguiram dois peritos criminais, para produzir a prova do crime da escravidão no Estado. Estão com registros de bolas de ferro, onde se acorrentavam os escravos. Minas Gerais deu posse ao presidente e em breve realizará a primeira reunião. Muitas fazendas em MG trazem as marcas e resquícios da escravidão.
Há de se lembrar, que a proposta da Comissão foi feita pela Comissão Nacional da Igualdade Racial na 22ª. Conferencia nacional da OAB em outubro no Rio de Janeiro, em um painel chamado Reparação da Escravidão Negra no Brasil, 2014. E que propôs então a criação, nos mesmos moldes da Comissão da Verdade da Tortura, essa Comissão NVENB, ao Conselho Federal e o presidente do Conselho, Marcos Vinicius Furtado, que imediatamente acolheu a proposta e levou a aprovação em novembro de 2014. O Conselho unanimemente aprovou e enviou o oficio à presidente da republica para que ela criasse uma Comissão semelhante à Comissão da Tortura, das mesmas formas, o que não aconteceu até o momento. Dia 6 de fevereiro, a Comissão tomou posse com 50 membros – 12 advogados, 35 membros consultores e convidados do poder judiciário e do ministério público.
Agência Africas – O que significa para a população negra do Brasil a instauração desta Comissão ? Qual o maior desafio?
Humberto Adami – Este trabalho está nos mostrando que essa é a maior iniciativa neste campo e a mais inédita desde a abolição da escravatura. A realização desta investigação é nos mesmos moldes da Comissão da Verdade sobre a Ditadura. Não há nada semelhante desde a abolição da escravidão e deve trazer um Brasil que ficou desconhecido para a maioria das pessoas. Isso praticamente refunda a nação, o Brasil, refunda a república. Estaremos trazendo ao conhecimento geral, tanto no relatório de 2015 como no final de 2016, um Brasil que não é conhecido de grande parte dos brasileiros. É a esperança de um dia termos o mesmo padrão de cidadania que os não negros tem neste Brasil de hoje. A violência contra a juventude negra nesse país cresceu em números alarmantes. Cresceu em 82 por cento nos últimos 12 anos, na morte violenta de jovens de 16 a 24 anos. Enquanto no de jovens brancos este numero diminuiu. Para a população negra e para o Brasil, o trabalho desta Comissão que vem se debatendo com poucos recursos, com dificuldade, com o trabalho de varias frentes para uma verdadeira cruzada, é ter uma República nova. Primeiro a condenação do Estado Brasileiro como responsável, pelo crime de escravidão. E teremos então a implementação de políticas publicas reparatórias, que possa ganhar relevo, com menos resistência por parte da população, que diante das cotas raciais, desenvolve uma resistência injustificada, e ao mesmo tempo trazer ao conhecimento da população um dos seus fundamentos que é a história dos africanos que vieram pra cá escravizados. Podemos incluir também a história indígena que ficou bastante afastada, do conhecimento geral; e tem ainda a implementação da Lei da História da África e Cultura Afro-brasileira, em todos os 5.483 ,municípios como sendo um produto desta iniciativa.
Agência Áfricas – Na prática como os resultados do trabalho desta comissão poderão promover uma mudança na promoção da igualdade de oportunidade da população negra?
Humberto Adami – O que vai surgir é um novo país, uma nova nação. Um Brasil que vai ter a oportunidade de dar combate aos resquícios da escravidão que persiste até hoje no nosso meio, e que tem a sua principal modalidade o racismo institucional, naquela memória coletiva que faz o país ter duas categorias de cidadãos. O cidadão de primeira categoria de direitos civis e o cidadão de segunda categoria de direitos civis. Há no país no momento uma categoria de cidadãos que não tem direito civis de primeira categoria. Não pode entrar no banco sem que soem seus alarmes; já por várias experiências foi demonstrado que a cor da pele tem influencia. Eles não têm posição na primeira camada de chefes de empresas, partidos políticos, nas forças armadas, nos primeiros postos de mando com melhores salários; o congresso nacional tem uma representação ínfima de pretos e pardos. Em qualquer aspecto da sociedade brasileira que você resolver examinar você vai encontrar sempre o cidadão brasileiro, preto ou parto, em posição desfavorável. Penso que ao buscar este mergulho na escravidão negra no Brasil, o Brasil caminha para encontrar no espelho a sua própria face. A cara do Brasil que não se vê refletida hoje, por exemplo, em bancas de venda de jornais, onde as mulheres negras, as meninas negras, não vêm refletidas na capa de uma revista uma cara como a sua. Eu penso que a implementação de ações afirmativas para negros, pardos e indígenas, alcançará uma forma mais aceitável, menos resistente pela grande maioria da população brasileira. Há bolsões explícitos de racismo no Brasil e é preciso acolher. E a abolição tem que chegar para esta parcela da população que se constitui na sua grande maioria, em termos gerais a média 54%, na Bahia chega a 84%. É preciso promover a refundação da república.
Agência Áfricas – Como será possível uma reparação e que tipo de reparação pode-se obter após mais de 120 anos da abolição da escravatura?
Humberto Adami – Essa é uma pergunta, que é um dos pontos centrais desta discussão. As iniciativas da reparação da escravidão que ocorreram e sem noticias com o jornalista Fernando Conceição, nos idos de 80, com a vereadora Claudete Alves, nos primeiros anos do 2000, no PT em São Paulo, eram iniciativas de reparação financeira. Há também um fundo nacional que está sendo encampado pelo membro da Comissão Mario Teodoro, ex-secretário executivo da Seppir, conhecido também por sua participação e empenho. Nós ao mergulharmos neste resgate da história da escravidão visando o conhecimento e a memória. A reparação pode se dar em vários momentos, em várias formas. Podemos ter uma reparação multi-geográfica, onde cada região, município ou estado possa desenvolver uma reparação mais local, em termos de resgate da memória, através de políticas públicas nacionais, chegando a todos os locais do país, o que nem sempre ocorre. Esta forma de reparação ainda está por vir, afastando um pouco a reparação financeira no momento. Vamos diminuir a resistência às políticas publicas nacionais, assim como já conseguimos com as cotas nas universidades, Prouni, pela educação. A grande reparação é buscar o conhecimento, a cultura, a história e a construção de parte de nossa herança cultural, gastronomica, religiosa, que deixou de acompanhar os primeiros africanos escravizados, que ajudaram a construir a nação , que resistiram mas que foram apagados covardemente da história deste país, além de ser submetidos a violentos castigos, humilhações, muitos castigos que custaram a própria vida.
Quando vamos buscar os resquícios da escravidão, da chamada abolição incompleta e inconclusa, estamos combatendo o racismo que persiste até os dias de hoje. É um trabalho que está nos engrandecendo, um trabalho de muitas gerações. Um trabalho que começou com o Movimento Negro fazendo a denúncia do racismo, desmontando o Brasil do mito da democracia racial, desmontando um Brasil onde éramos todos iguais, e trazendo um país com uma cultura extremamente escravocrata e sem todos os direitos para todos. Convidamos todos a fazer parte da grande reconstrução da nação.
Claudia Alexandre
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