(Portal Fórum, 22/06/2015) Sojourner Truth foi uma mulher negra, ex-escrava, conhecida principalmente por ter feito um discurso na Women’s Convention em Akron, Ohio, no ano de 1851. Na ocasião, Sojourner questionou os privilégios oferecidos às mulheres brancas, enquanto as mulheres negras eram forçadas ao trabalho braçal pesado. Em sua fala, indagou: “Não sou eu uma mulher?”.
Não estamos mais no século XIX e as mulheres brancas não são mais consideradas tão intelectualmente e fisicamente inferiores aos homens brancos que não possam trabalhar; mas se Sojourner estivesse viva hoje como uma mulher negra brasileira, não é difícil imaginar que continuaria se sentindo excluída da categoria “mulher”: nas discussões políticas sobre gênero, a mulher negra continua a ser excluída e, muitas vezes, nem sequer é lembrada como uma mulher.
Em uma análise de eventos feministas passados e futuros, quantas mulheres negras estavam presentes nos debates? Na esmagadora maioria das vezes, nenhuma. Somente eventos voltados exclusivamente para o debate racial contam com a participação significativa de mulheres negras – uma espécie de nicho que revela uma mentalidade problemática: se o evento é sobre mulheres como um todo, a representatividade é branca.
No Brasil, esse problema tem uma carga ainda maior, pois a quantidade de pessoas que se declaram pardas e pretas é maior do que a quantidade de pessoas que se reconhecem como brancas; e como estamos falando de dados colhidos a partir da autodeclaração dos entrevistados, é possível que a quantidade de pessoas negras seja ainda maior. Ou seja, embora as mulheres brancas brasileiras sejam consideradas representativas unânimes da categoria “mulher”, elas nem mesmo são a maioria no país onde vivem. Com os números da população em mãos, a generalização de mulheres brancas como mulheres “universais” se torna uma questão ainda mais grave.
É importante ressaltar que os problemas enfrentados pela população feminina brasileira sempre são piores para as mulheres negras, que protagonizam os piores índices e estão dentro dos grupos de maior vulnerabilidade. Mortalidade materna, violência doméstica, feminicídio, mortes pela ilegalidade do aborto, desigualdade salarial, além de tópicos como violência policial e dificuldade no acesso a educação: todos são mais agudos contra as mulheres negras. Apesar disso, muitos movimentos feministas preferem ignorar esses fatos e constroem eventos e materiais onde as mulheres negras nem sequer estão presentes.
Por isso, as discussões sobre as mulheres brasileiras acabam virando exclusivamente questões de gênero, como se os fatores raciais e de classe não mudassem nada na equação. Na prática, o fator da cor faz muita diferença e cria uma separação até mesmo entre as mulheres. No âmbito da literatura, por exemplo, as mulheres brancas são muito mais publicadas e reconhecidas enquanto escritoras do que as mulheres negras. Não dá para ignorar isso, nem no quesito literatura, nem em quesito algum.
Por mais que nós, mulheres negras, estejamos respaldadas por dados institucionais e índices sociais, parece que precisamos mendigar até mesmo o menor espaço. É como se pedíssemos favores ou até fôssemos chatas quando levantamos questões como essas aqui pautadas. Mas se as mulheres brancas se sentem desconfortáveis com essas colocações, imagine como nós, mulheres negras, nos sentimos ao ver – evento após evento, debate após debate – que ainda somos tratadas como um nicho dentro de outro nicho e que nossas demandas raramente são sequer mencionadas.
Para alguns, pode aparentar que os movimentos de mulheres negras agem com sectarismo, mas o sectarismo existe e se embasa na universalização da branquitude. Enxergar mulheres brancas como aptas a falar por todas as mulheres é racismo. A separação consta na anulação das diferenças, ao invés de reconhecer que mulheres diferentes têm, sim, muito em comum – mas elas também vivenciam questões distintas e essas questões específicas precisam ser incluídas nas pautas do dia.
O racismo brasileiro é um obstáculo difícil de transpor e está presente em muitos contextos, até mesmo entre mulheres. Ele se manifesta pelo silêncio, pela ausência, pelo espaço desocupado e também pelo convite não feito. Precisamos questionar o motivo por que a presença de apenas pessoas brancas ainda é vista como algo natural; e dessa reflexão, pode até surgir o reconhecimento do racismo e a vontade de combatê-lo.
Acesse no site de origem: Seria a mulher branca a mulher universal?, por Jarid Arraes (Portal Fórum, 22/06/2015)