(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 06/08/2015) Mulher trans negra, a pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus, entrevistada pela Agência Patrícia Galvão para o Dossiê Violência contra Mulheres, fala sobre como a intersecção dos marcadores sociais de violência potencializa as chances de violações de direitos humanos como parte constitutiva da existência de milhares de brasileiras em qualquer classe social.
Jaqueline é psicóloga e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília, onde atua como pesquisadora, e pós-doutora pela Fundação Getúlio Vargas. Entre 2008 e 2011 atuou como assessora no desenvolvimento de programas de atenção à saúde e prevenção ao uso de drogas no Ministério do Planejamento e na Presidência da República. Em 2012 recebeu um prêmio Jabuti como co-autora do livro Psicologia Social: Principais temas e vertentes (Câmara Brasileira do Livro).
Como a questão da identidade de gênero se associa a outros marcadores de violência contra as mulheres trans no Brasil?
Historicamente, a população trans é estigmatizada, marginalizada e perseguida, devido à crença na sua anormalidade, decorrente do estereótipo de que o “natural” é que o gênero atribuído ao nascimento seja aquele com o qual a pessoa se identifica e, portanto, espera-se que ela se comporte de acordo com o que se julga ser o “adequado” para esse ou aquele gênero.
O Brasil é o país no qual mais se matam pessoas trans no mundo (particularmente as travestis e as mulheres trans), sendo responsável, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas trans registrados no mundo entre 2008 e 2011, e no mesmo período por 50, 5% desses crimes na América Latina (saiba mais).
No que tange às questões de gênero, nos assassinatos das mulheres trans e travestis verifica-se a mesma lógica das violências conjugais comuns em casais heteronormativos e pautados por relações machistas, caracterizadas pela agressão da mulher por parte do homem quando em uma situação de conflito, como uma estratégia de controle sobre o corpo feminino; além do desamparo aprendido e a descrença das vítimas ante à inoperância das instituições sociais de suporte.
Quais são as especificidades e semelhanças na violência sexual e doméstica cometida contra mulheres trans?
As violações contra as mulheres trans, de forma geral, repetem o padrão dos crimes de ódio, motivados por preconceito contra alguma característica da pessoa agredida que a identifique como parte de um grupo discriminado, socialmente desprotegido, e caracterizados pela forma hedionda como são executados, com várias facadas, alvejamento sem aviso, apedrejamento, reiterando, desse modo, a violência genérica e a abjeção com que são tratadas as pessoas trans no Brasil.
Embora existam decisões judiciais favoráveis à aplicabilidade da Lei Maria da Penha para violências conjugais em casais formados por homens cisgêneros (que não são trans) e mulheres trans, faltam dados mais precisos quanto à realidade de violência sexual e doméstica vivida pelas trans brasileiras, dada principalmente a sua desproteção social. Não há informações oficiais de como os órgãos públicos brasileiros têm-se articulado para auxiliá-las, no que concerne: à possibilidade de serem atendidas nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher; à proteção pela Lei Maria da Penha; e ao respeito à sua identificação no trabalho e outros espaços.
E quais são os caminhos para enfrentar a violência e afirmar direitos que a mídia pode ajudar a divulgar?
A mídia brasileira é contumaz em reproduzir estereótipos de gênero que desumanizam as pessoas trans, mais frequentemente as mulheres trans, que redundam na reafirmação da violência estrutural contra elas, tornando-as alvos constantes de estereótipos nos meios de comunicação, porque ainda se considera “natural” que sejam ridicularizadas. Como expressão das representações da sociedade, a mídia repete a histórica crença na anormalidade da população trans, sob uma linguagem de escárnio que naturaliza violações.
Uma visão mais inclusiva por parte da mídia traria consigo novas imagens de masculinidade e de feminilidade, que aceitariam, por exemplo, a mulheridade das mulheres trans.
Adotar práticas de responsabilidade social, que medeiem a liberdade de expressão e os direitos de personalidade das pessoas retratadas, ainda é um desafio para as mídias brasileiras, que em nome do lucro fazem uso de sensacionalismo e desrespeito à dignidade humana.
Com uma conscientização maior sobre a violência estrutural que a população transgênero sofre, os meios de comunicação poderiam ser parceiros na construção da cidadania trans.
E que cuidados a imprensa deve ter ao reportar casos de violência sobre mulheres trans, e também quando entrevistam essas mulheres?
Primeiramente, buscar conhecê-las para além dos estereótipos e reconhecê-las como seres humanos plenos. Muito ainda tem de ser enfrentado para se chegar a um mínimo de dignidade e respeito à identidade das pessoas trans, para além dos estereótipos. Um desses estereótipos leva alguns a se esquecerem que a pessoa trans vivencia outros aspectos de sua humanidade, para além dos relacionados à sua identidade de gênero.
Entre as pessoas de um mesmo grupo há grande diversidade: as pessoas brancas não são todas iguais, como não são as pessoas negras, mulheres, homens, indígenas, trans e tantas outras.
As pessoas trans, como quaisquer seres humanos, podem ter diferentes cores, etnias, classes, origens geográficas, religiões, idades, orientações sexuais, uma rica história de vida, entre outras características.
A partir disso, algumas noções básicas de como se referir às pessoas se fazem imprescindíveis. Destaco aqui, genericamente, que se deve falar “as” travestis e não “os” travestis, que é totalmente anti-ético perguntar ou divulgar os nomes civis de pessoas trans, tenham elas conseguido modificá-los ou não.
Pensando nessa perspectiva, indico a leitura do guia digital que publiquei a respeito, “Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos”, no qual se apresentam formas inclusivas de se abordar pessoas trans. Enfim, recomendo que os jornalistas perguntem às próprias mulheres trans como elas preferem ser tratadas e respeitem-nas, ao invés de se referir a elas desrespeitando sua autonomia.
Contato da fonte:
Jaqueline Gomes de Jesus, doutora em Psicologia Social e do Trabalho e Pós-Doutora em Trabalho e Movimentos Sociais
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Atualizado em 07/08 às 6h45.