(O Globo, 19/08/2015) A pesquisa analisou apenas países em desenvolvimento, responsáveis por 98% das interrupções inseguras
É como se, ao longo de um ano, toda a população da cidade do Rio de Janeiro mais meio milhão de pessoas precisassem de tratamento médico para graves infecções, correndo risco de morte. O cenário aterrador é, grosso modo, apresentado por um estudo do Instituto Guttmacher, dos Estados Unidos, segundo o qual sete milhões de mulheres são atendidas anualmente em serviços de saúde de países em desenvolvimento devido a complicações geradas por abortos inseguros. A pesquisa usou dados de estatísticas oficiais dos setores público e privado e de estudos científicos de 26 nações da América Latina, da Ásia e da África.
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— Esses países têm legislações sobre aborto muito diferentes entre si, mas nenhum deles tem leis muito liberais relacionadas ao tema. O que os une é o fato de serem países em desenvolvimento, e o aborto inseguro é um problema praticamente exclusivo dessa parte do mundo — diz a autora do estudo, Susheela Singh, vice-presidente para pesquisas do instituto.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), dos 22 milhões de abortos clandestinos realizados por ano no planeta, 98% acontecem nas nações em desenvolvimento. Além de causar a morte de quase 300 mil mulheres por ano — uma média de 800 por dia —, essa prática provoca um número ainda maior de internações hospitalares. Apenas no Paquistão, 622 mil mulheres foram internadas ao longo de um ano com alguma complicação pós-aborto ilegal. O país asiático encabeçou a lista de internações desse tipo, com um índice de 14,6 mulheres para cada mil.
— Paquistão e Bangladesh (8,7 internações a cada mil) me chamaram muita atenção pelos seus altos índices. Acredito que aspectos relacionados a cultura e religião explicam muito sobre eles. Nem todos os valores culturais e religiosos têm um papel positivo sobre a saúde, e temos que começar a pensar se as graves consequências disso valem a pena — argumenta Susheela. — Investir maciçamente em prevenção e mudar a maneira como esses países entendem a saúde reprodutiva é essencial para reduzir essas taxas.
BRASIL COM MENOR ÍNDICE
A escassez de informações oficiais e estudos sobre aborto inseguro em outras nações em desenvolvimento foram um entrave para a expansão da pesquisa do Instituto Guttmacher, que pretendia analisar mais países. Outro aspecto destacado pela autora é que somente parte do problema foi abordada, já que 40% das mulheres que precisam de atendimento médico depois de uma interrupção insegura da gravidez não procuram serviços de saúde, de acordo com a OMS. Considerando-se apenas a América Latina, essa estimativa cai para entre 20% e 25%.
O Brasil se destaca com a menor quantidade de internações pós-aborto. Embora o número absoluto de atendimentos médicos em um ano seja significativo (113.164), é baixo se considerado proporcionalmente ao total da população: 2,4 internações para cada mil mulheres. Para a pesquisadora que liderou o estudo, a explicação para o relativo bom índice brasileiro pode estar no fato de que a interrupção da gravidez está em pauta há mais tempo por aqui. No Brasil, o aborto é permitido só nos casos de violência sexual, anencefalia do feto ou risco de vida para a gestante. Desde 2010, não é necessário boletim policial para que a mulher que foi estuprada tenha direito ao atendimento no SUS.
— É apenas uma hipótese, mas creio que o sistema público de saúde do Brasil começou a lidar com o assunto antes da maioria dos países que analisei. Muitos só passaram a discutir isso na última década — diz a americana, que teve sua pesquisa publicada hoje na “BJOG”, uma revista internacional de obstetrícia e ginecologia.
A professora da UFF Hildete Pereira de Melo, entretanto, não acredita que o cenário tenha melhorado no Brasil nos últimos anos.
— Trabalhei com os primeiros dados produzidos aqui sobre o assunto. E, infelizmente, quando você vê os dados atuais, percebe que são basicamente os mesmos. Na década de 80, a curetagem pós-aborto era a terceira causa de morte materna, depois de cesariana e parto natural. Hoje, o ranking ainda é este — afirma ela, que foi a primeira estudiosa brasileira a pesquisar sobre aborto inseguro, ainda em 1981. — Comparando com outros países em desenvolvimento, podemos parecer bem, mas é preciso lembrar que estamos longe do ideal. A rede pública do Brasil é privilegiada em relação ao restante da América Latina, onde o sistema foi dilacerado. Nossa rede é ruim, mas é muito melhor do que não ter nada.
Segundo ela, no caso brasileiro, a média de internação por complicações depois de um aborto clandestino é de três dias:
— Isso representa um alto custo para o sistema de saúde.
A pesquisa de Susheela Singh endossa essa percepção. De acordo com ela, estima-se que US$ 232 milhões — o equivalente a cerca de R$ 810 milhões — são gastos todo ano pelo sistema de saúde de países em desenvolvimento para tratar mulheres nesses casos. As complicações pelas quais elas passam vão de hemorragias e infecções a profundas perfurações no útero e na vagina.
A socióloga Sonia Corrêa faz uma ressalva: a pesquisa traz um número de atendimentos pós-aborto no Brasil muito inferior ao esperado.
— O estudo não esclarece os parâmetros de exclusão de abortos espontâneos usados. Eu suspeito que essa exclusão, no caso do Brasil, tenha sido excessiva — acredita.
A médica Anna Christina Willensens, que participa da equipe que realiza abortos em casos legais no Hospital Fernando Magalhães, do Rio, também pondera que é difícil separar os números oficiais referentes aos abortos provocados e aos espontâneos. A autora da pesquisa americana alega que excluiu de sua análise as interrupções naturais, mas, segundo Anna Christina, pelo menos no Brasil, essa separação é complexa.
— Muitas dizem que o aborto foi espontâneo, quando não é verdade. O dado já sai errado do hospital. Elas mentem por vergonha ou medo de serem discriminadas. Acredito que isso aconteça na maioria dos países em desenvolvimento — diz ela. — O maior perigo nem são as clínicas de aborto clandestino, mas as pessoas que fazem o procedimento em fundo de quintal, sem saber nada de medicina. Esta semana, atendi uma paciente que pagou R$ 1.200 para uma pessoa fazer isso e acabou com uma grave infecção. Por sorte, não perdeu o útero.
Clarissa Pains
Acesse o PDF: Estudo mostra que 7 milhões de mulheres ao ano são internadas com complicações pós-aborto (O Globo, 19/08/2015)